sol.sapo.ptFabio Sousa - 26 abr. 11:00

Afonso Costa e o 25 de Abril

Afonso Costa e o 25 de Abril

No 25 de Abril não esteve envolvida nenhuma figura do calibre de Afonso Costa. Mas quantas esperanças de muita gente que há 50 anos saiu à rua vitoriando a revolução não acabaram em dolorosas deceções?

Há um paralelismo evidente entre a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910 e a revolução democrática de 25 de Abril de 1974.  
Uma propôs-se pôr fim ao regime monárquico, instaurando a 1.ª República, a outra acabou com o Estado Novo, inaugurando a 2.ª República.             
Os ideais das duas revoluções eram basicamente os mesmos, e por isso Mário Soares falava tanto da ‘ética republicana’ e dos seus heróis: António José d’Almeida, Afonso Costa, Bernardino Machado, José Relvas e muitos outros.

Daqueles nomes, Afonso Costa foi, sem dúvida, a figura mais marcante.

Almeida era um excecional tribuno mas um medíocre político, e nunca conseguiu ter no regime a influência que tivera no tempo da propaganda; Bernardino Machado era um moderado e um conciliador, que nos momentos decisivos não conseguiu impor as suas ideias; Afonso Costa, pelo contrário, moldou fortemente o regime e influenciou-o mesmo quando estava fora do país.

Foi o autor do desenho jurídico da 1.ª República, o líder do partido que a dominou do princípio ao fim – o Partido Democrático –, foi ministro, primeiro-ministro e conseguiu o seu objectivo de levar Portugal a envolver-se na 1.ª Grande Guerra.

Os republicanos tinham por Afonso Costa uma verdadeira devoção: além de ser um orador acutilante, implacável, dotado de um apurado killer instinct, era um homem pragmático, com grande sentido estratégico e que não olhava a meios para atingir os fins.

Como estadista e governante, foi a única grande figura da República.

Mas do mesmo modo que era adorado pelas massas, era detestado pelos seus próprios colegas do movimento republicano.

António José d’Almeida afastou-se dele, Bernardino Machado desiludiu-se, José Relvas criticou-o asperamente, João Chagas idem.

Alguns professores de Coimbra (universidade onde se formou e deu aulas) não abonaram depois a seu favor.

 Entre os que o criticaram, a palavra que surge com maior frequência é ‘desleal’.

Era um homem no qual não se podia confiar.

O que até há pouco não se sabia é que foi ele o mandante do regicídio, ocorrido no dia 1 de Fevereiro de 1908, no Terreiro do Paço.
Tive essa intuição quando consultava um diário escrito por ele na prisão, onde estava detido no momento exato em que aconteceu a tragédia.

Nesse dia, Afonso Costa escreve que se apercebeu de movimentações da Guarda, ouviu soldados dizer que o Rei tinha sido morto, mas conclui que não acredita nisso.

E nos quatro dias seguintes, continuando preso, não faz mais nenhuma alusão ao facto.

Sucede que a prisão era no centro de Lisboa, no quartel do Cabeço de Bola, em Arroios, sendo impossível que o extraordinário acontecimento do assassínio do Rei não lhe tivesse chegado aos ouvidos.

Estava, pois, a fingir-se desentendido.

E porquê?

Só podia haver um motivo: porque queria desligar-se a todo o custo de qualquer associação ao regicídio.

Ora, um tempo depois tive a certeza disso quando, numa entrevista da filha de um dos regicidas, Manuel Buíça, esta afirma que Afonso Costa participou em sua casa em reuniões preparatórias do atentado.

Costa sabia, pois, perfeitamente, o que se preparava.

Mas qual teria sido a sua participação no crime?

Quatro dias antes do regicídio, acontece em Lisboa uma revolta que muita gente levou a sério mas se percebe hoje ter sido uma mera cortina de fumo: a Revolta do Elevador da Biblioteca.

O seu objetivo era desviar as atenções de um outro golpe em preparação, de muito maior alcance.

E qual era ele?

Um atentado contra o Rei.

E quem era o organizador desta revolta?

Afonso Costa.

Ele e mais dois monárquicos dissidentes – José d’Alpoim e o visconde da Ribeira Brava – formavam um comité secreto chamado Coruja que lançou na rua este simulacro de revolução.
O chefe da Coruja era Afonso Costa, como é visível em documentos em que dá as ordens.

Foi, pois, Afonso Costa quem planeou o Golpe do Elevador – e quem carregou no botão para dar início ao atentado do Terreiro do Paço.

Que, aliás, não seria só o assassínio do Rei mas de todos os Braganças.

A prová-lo está o facto de também ter sido
morto o príncipe-real D. Luiz Filipe (atingido,
não com uma bala perdida, mas com um tiro
dirigido com precisão à cabeça), e de o próprio
D. Manuel ter sido ferido; mas D Amélia, apesar
de se ter posto de pé, sendo um alvo fácil,
não sofreu um arranhão.

A história está cheia de mitos, e Afonso Costa é um deles: o seu nome, ainda hoje celebrado por muitos como um exemplo, está diretamente ligado a um crime hediondo.

E é também por isso que não gosto de comemorações – seja do 25 de Abril, do 25 de Novembro, do 28 de Maio, do 5 de Outubro ou do 1.º de Dezembro.

Aquilo que celebramos hoje pode revelar-se amanhã uma cruel desilusão.

Penso que no 25 de Abril não esteve envolvida nenhuma figura do calibre de Afonso Costa.

Mas quantas esperanças de muita gente que há 50 anos saiu à rua vitoriando a revolução não acabaram em dolorosas deceções?

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