www.sabado.ptCarlos Neto - 25 abr. 18:52

Restaurar a liberdade e participação das crianças

Restaurar a liberdade e participação das crianças

Opinião de Carlos Neto

As conquistas de abril durante os últimos cinquenta anos, que agora comemoramos, foram muito significativas em todos os setores da vida social, económica, laboral, escolar, familiar, habitacional e de saúde pública. Não podemos comparar o estado de pobreza e falta de liberdade democrática existente nesse tempo de um regime ditatorial obscuro e opressivo dos direitos fundamentais de vida em diversos setores da população portuguesa e tudo o que se passou a partir da institucionalização da democracia. Muitos progressos foram realizados pela persistência e dedicação de muitos protagonistas, através da sua luta politica, cultural, educacional, jurídica e comunitária.

No meu caso pessoal, dediquei toda a minha vida universitária, pedagógica e profissional ao estudo e intervenção no domínio da motricidade e jogo no desenvolvimento da criança. Sempre foi nossa convicção, que as grandes conquistas da humanidade se iniciam na infância e perduram durante toda a nossa existência, como garantia de adaptação, resiliência e sucesso, nos confrontos que nos são colocados ao longo da vida.

O desenvolvimento da criança é um processo complexo, não linear, de grande diversidade individual e movido pela riqueza de experiências realizadas, relações humanas consistentes e confronto permanente com as adversidades internas e externas entre o corpo e o envolvimento físico, social e emocional, a par do seu crescimento, maturação e aprendizagem.

Ainda me lembro de ser criança: o prazer em viver o meu corpo à solta, exprimir as minhas energias quase hiperativas, através de brincadeiras e aventuras, dos desafios e confrontos com os perigos e limites do movimento do corpo, do sentimento de autonomia em descobrir o espaço público da rua, do bairro e da cidade, do cheiro e ruído no contato com os espaços naturais, da liberdade de brincar livre em solidão ou em companhia com os amigos, de ficar com os joelhos esfolados e na maior parte dos casos todo sujo, de subir às arvores e poder contemplar lá do alto a paisagem do espaço construído e da natureza, da exaltação dos jogos de luta e perseguição (perseguir, ser perseguido e lutar), dos jogos de faz-de-conta imitando com imaginação e fantasia situações da vida real, da utilização objetos de jogo tradicionais (pião, berlinde), instrumentos musicais ou de guerra (fisga, pistolas, espadas, etc.), bolas, elásticos (etc.) ou naturais (pedras, paus, caricas, água, fazer fogo, saltar os muros, equilíbrio em superfícies instáveis), descobrir espaços escondidos e secretos, deitar-me no chão e observar o céu, fechar os olhos e sentir o meu corpo e o mundo à minha volta. Ainda me lembro de viver a minha infância com autonomia e liberdade de ter tempo e espaço para brincar.

Também muitos momentos de tédio e frustração de não poder ter tudo o que desejava, mas que me obrigava a ter mais consciência da realidade do mundo em que vivíamos. São fascinantes essas memórias que perduram ainda hoje na minha já longa existência. Não tínhamos consciência do estado ditatorial em que vivíamos, nem da miséria social que nos envolvia nesse tempo.

Nos últimos cinquenta anos e resultado da recuperação de um estado democrático, erradicámos o trabalho infantil, melhorámos significativamente a frequência e o sucesso educativo nas escolas públicas, particulares e cooperativas, a assistência na saúde materno-infantil, a taxa de pobreza, o conforto na vida familiar e a qualidade de vida em comunidade.

A conquista da democracia está sempre inacabada. Implica mudança, coragem e persistência em atitudes cívicas e também participação em melhorar as regras de construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e em condições de oferecer oportunidades iguais ou similares para o sucesso de todos os cidadãos. É um processo de construção coletiva que implica consciência crítica, diálogo construtivo, relações  humanas de elevada solidariedade, tomadas de decisão promotoras dos direitos humanos, e com uma elevada atenção às grandes mudanças que vão acontecendo pelo mundo, com grande diversidade ideológica, económica, tecnológica, ecológica, religiosa e demográfica.

Nas últimas décadas, estas alterações foram muito significativas em todos os domínios, lançando imensos desafios de incerteza e imprevisibilidade para o futuro próximo e distante. Este é o maior desafio da humanidade: como construir um mundo melhor com paz e solidariedade entre todos e capaz de estruturar uma nova era civilizacional com maior elevação e iluminação na vida humana e no planeta que nos envolve? Não é com toda a certeza um pensamento romântico, idealista e utópico. É uma necessidade urgente, sendo necessário trabalhar juntos e em rede, fazendo emergir novos modelos de ação, novas estratégias de organização e funcionamento dos diversos setores da sociedade.

Qual é uma das melhores opções para alcançar estes objetivos num mundo futuro que será plural e que exigirá do ser humano múltiplas competências de natureza adaptativa e criativa? Tudo começa na infância. As crianças são a solução para atingir níveis de superação, resiliência e capacidade de mudança da sociedade do futuro. A liberdade de ser, crescer e existir é um dos instrumentos mais poderosos para a sua preparação como seres pensantes, empreendedores e procurando o sucesso. Necessitamos com urgência de um novo paradigma de educação familiar, escolar e comunitária, baseada em valores e processos participativos, que permitam a emergência de uma nova geração capaz de proceder a uma nova revolução (evolução) de princípios organizadores de uma sociedade mais democrática, culturalmente evoluída (cognição universal) e consciente das suas necessidades de sobrevivência biológica (corpos ativos) e social (saúde relacional).

Uma infância saudável e bem preparada em todas as dimensões do desenvolvimento humano, implica a existência de tempo e espaço para serem livres e poderem participar em decisões respeitantes aos seus direitos consagrados ao nível nacional e internacional:

-A liberdade de terem tempo para serem crianças e viverem a sua infância de forma plena;

-A liberdade de terem tempo e espaço para poderem brincar e jogar de forma livre;

-A liberdade de serem ativas (dispêndio de energia) na família, na escola e na comunidade;

-A liberdade de autorização de se deslocarem a pé, de bicicleta ou de transportes públicos nos percursos de ida para a escola e regresso a casa;

-A liberdade de aprender na escola de forma ativa, cooperativa, democrática, inclusiva, inovadora e participativa;

-A liberdade de terem espaços escolares (não plastificados) que sejam interessantes e sedutores, humanizados e naturalizados para brincarem, jogarem e aprenderem de forma ativa conhecimentos fundamentais de natureza motora, cognitiva, emocional e social;

-Liberdade de terem nos espaços escolares uma supervisão não proibitiva e normalmente prisioneira de medos existentes dos adultos;

-Liberdade de oportunidades para atividades arriscadas e jogos de luta e perseguição próprios da idade, género e condição social nos diversos contextos de vida;

-Liberdade de poderem sair á rua sem supervisão adulta, ao pé de casa, ao redor da habitação e no espaço público da cidade, vila ou aldeia (fechar ruas ao trânsito, diminuir a velocidade automóvel, devolver os passeios e construir ruas com segurança para as crianças);

-Liberdade de acesso aos espaços e equipamentos de jogo e recreio nos espaços públicos;

-Liberdade de poderem brincar e jogar nos espaços públicos com materiais e equipamentos de movimento (jogar à bola, andar de bicicleta, skate, trotinete, etc.);

-Liberdade de contato regular com a natureza (espaços verdes, florestas, jardins públicos, quintas pedagógicas, etc.);

-Liberdade de poder participar na definição de politicas públicas ao nível escolar e municipal (assembleias de crianças e jovens);

-Liberdade de serem ouvidas na escolha de atividades lúdicas, artísticas e desportivas nas atividades organizadas em instituições com valor pedagógico, científico e técnico.

A liberdade de ser criança aprendente, implica a existência de prazer, divertimento e superação e responsabilidade. A liberdade é um bem precioso na vida humana que não deve ser esquecido, negligenciado ou aprisionado. A liberdade é um valor supremo da humanidade que deve ser preservado em todas as idades e em especial nas primeiras idades. Crianças livres serão adultos com liberdade. Mais crónicas do autor 07:00 Restaurar a liberdade e participação das crianças

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