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A história dos filmes censurados

A história dos filmes censurados

Durante o Estado Novo, o cinema foi utilizado como uma ferramenta de propaganda do regime para promover a sua ideologia e controlar a narrativa pública. A realizadora e investigadora Leonor Areal explica aquilo que está em causa.

Entre 1933 e 1974, a Censura desempenhou um papel fundamental na supressão de ideias contrárias ao regime. Controlava rigidamente a publicação de jornais, revistas, livros, programas de televisão e filmes, garantindo que apenas os conteúdos alinhados com a ideologia do governo eram permitidos. O livro Cinema e Censura em Portugal, de Lauro António, lançado em 1978, oferece uma visão detalhada de como o sistema de censura funcionava no contexto cinematográfico. Contém análises sobre diversos filmes, tanto portugueses quanto internacionais, que foram proibidos ou tiveram partes cortadas antes de serem exibidos nos cinemas nacionais.

Os relatórios da Censura incluídos na obra fornecem informação sobre o pensamento do regime e as razões específicas pelas quais cada filme foi censurado. Após a Revolução de Abril de 1974, filmes anteriormente censurados começaram a ser exibidos, como O Último Tango em Paris, que teve estreia em Portugal em 30 de abril daquele ano, atraindo um grande público tanto português quanto espanhol, uma vez que Espanha ainda estava sob a ditadura de Franco.

Começando pelos exemplos internacionais, podemos evocar Lolita de Stanley Kubrick. “Baseado num livro que foi proibido no nosso país, este filme (de elevadíssima craveira artística e técnica) expõe com realista fealdade a história sórdida de uma excessiva paixão de um homem adulto por uma adolescente. A baixeza do argumento leva-nos a votar pela reprovação”, escreveram os censores. O filme de 1962 viria a estrear-se nas salas portuguesas 10 anos depois no decorrer da denominada Primavera Marcelista: mas com cortes. Do mesmo realizador, Laranja Mecânica foi reprovado por unanimidade. É de 1971 e estreou em Portugal três anos depois.

Já Drácula, Príncipe das Trevas, de Terence Fisher, era visto pela censura como “um filme que pretende crer na existência de vampiros, em que estes aparecem ligados à religião”. ”Por isso votamos a sua reprovação”, explicaram os censores, sendo que o filme de 1966 só estrearia em 1980 em território nacional. A Flauta Mágica, de Jacques Demy, era encarado como “um filme intencionalmente contra a Igreja”. “Não vemos que o público em geral seja capaz de se situar no contexto da Idade Média. Por outro lado, cremos que o mesmo público se deixará influenciar pela ação do filme que é de facto um libelo contra a igreja. Trata-se de um filme, de facto, bem feito que poderia vir a fazer muito mal. Aprovaríamos se o filme trouxesse algo que ajudasse o público a interpretar e a julgar os factos aludidos. Reprovamos”.

Outro relatório dizia assim: “O filme é todo ele passado em ambiente de fortíssimo stress psicológico, tendo a influência no sentido da criação de um sentimento de horror à guerra. No momento presente julga-se não oportuna a sua exibição”, redigiram os censores acerca de Assim Nasce um Herói, de Robert Aldrich, que estreou somente em 1983. 

Todos estes filmes, durante o período do Estado Novo, eram visionados numa sala secreta no Cinema São Jorge, localizado em Lisboa, onde a censura os analisava e decidia se poderiam ser exibidos no país.

Além destas frases para fundamentar a reprovação dos filmes, havia uma que era típica e universal. “A bem da nação”, explica a realizadora Leonor Areal, em entrevista ao i, era uma justificação dos censores que funcionava como uma espécie de “envelope formal”, enquanto na prática servia para manter o poder e evitar pensamentos divergentes. “Os filmes eram submetidos à censura, sofrendo cortes frequentes, e isto conduziu à autocensura por parte dos produtores e escritores”, explica a também professora-adjunta convidada na ESAD-CR, Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, parte do Instituto Politécnico de Leiria. Cineastas como Manuel Guimarães enfrentaram dificuldades para abordar temas sociais nos seus filmes neo-realistas, enfrentando cortes e resistência da censura.

“Durante cinco décadas, a existência de censura — no geral e em particular no cinema — exerceu-se fortemente através dois métodos principais: as penalizações continuadas impostas pela Comissão de Censura aos Espectáculos e um sistema de controle baseado na tentação e recompensa — representado pelo Conselho do Cinema que selecionava os projectos de filmes a apoiar financeiramente pelo Fundo do Cinema Nacional”, lê-se em Os Tabus do Cinema Português, artigo publicado pela realizadora que se dedica à integração interdisciplinar das áreas da literatura, comunicação, educação e cinema, explorando as formas como cineastas da geração do Cinema Novo conseguiram contornar a censura de maneiras criativas. Por exemplo, adotando uma linguagem indireta para abordar problemas sociais e negociando com os censores, mencionando exemplos de como alguns filmes foram autorizados a ser exibidos em salas de elite após negociações.

“Os filmes são muito interessantes, esses filmes que foram proibidos, mas os autores não esqueceram e, a partir de determinada altura, não se deram à preocupação de se autocensurarem. Queriam realmente fazer implodir o cinema e o país. E alguns são muito premonitórios da Revolução, por exemplo, O Mal-Amado (1973), que é um filme de Fernando Matos Silva, ou Lotação Esgotada (1972) de Manuel Guimarães”, diz Leonor Areal que, em 2009, obteve o doutoramento em Ciências da Comunicação, com especialização em Cinema, pela NOVA FCSH, com a tese intitulada de Um País Imaginado – Ficções do Real no Cinema Português, que foi publicada em 2011.

“Também temos Sofia e a Educação Sexual, de 1973, uma longa-metragem de Eduardo Geada, que constitui um filme altamente crítico do sistema patriarcal que dominava as mulheres de todas as classes”, continua a realizadora que fez a investigação de pós-doutoramento sobre a censura no cinema português. “Não nos podemos esquecer de Manoel de Oliveira. Uma coisa é os filmes terem cortes, já é gravíssimo, e outra é lermos os guiões dos mesmos e percebermos aquilo que poderiam ter sido se existissem. Se tivéssemos esses filmes hoje em dia, seriam uma referência da nossa História, da nossa cultura, da nossa experiência coletiva”, explicita a investigadora, que aborda o percurso do cineasta em O Pré-realismo de Manoel de Oliveira (projetos não realizados).

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