www.sabado.ptCarlos Neto - 18 abr. 22:02

Onde estão as memórias de infância dos adultos?

Onde estão as memórias de infância dos adultos?

Opinião de Carlos Neto

As nossas memórias de situações vividas e experienciadas na infância, constituem um património fundamental como referência para o nosso desenvolvimento ao longo de toda a nossa vida. Somos todos o resultado do que vivemos e experimentamos nos primeiros anos de vida. Lembro-me perfeitamente da cidade onde nasci, conheço cada centímetro da rua, do bairro, da cidade onde cresci e das aventuras, jogos e brincadeiras realizadas com os amigos que espontaneamente apareciam em todos os lugares da nossa existência como crianças. Todos temos nas nossas memórias, perceções e representações mentais, das caraterísticas e experiências realizadas nos espaços físicos naturais e construídos, dos tipos de mobilidade e circulação autónoma na cidade (a maior parte das vezes passeando, correndo ou fugindo de situações singulares, nos percursos de ida volta da escola, ou brincando livremente nos tempos livres, etc.), os locais secretos que descobríamos com liberdade de ação e muitas vezes em situações de risco, as dinâmicas de grupo de amigos no espaço público, escolar e familiar através de jogos tradicionais, fuga, perseguição e lutas e em muitas circunstâncias uma noção das vivências subjetivas do território (sentido do lugar) como expansão e expressão de um corpo imaginário e um espaço de vida, recheado de margens de risco e segurança que estabelecíamos com liberdade na vivência do tempo entre a casa, a escola e o brincar de rua. Nas palavras sábias do então nosso Grande Mestre em pedopsiquiatria Dr. João dos Santos "(…) cada um de nós vive a sua infância com maior ou menor emoção, com ternura ou deceção lamentativa. Cada um de nós tem uma motivação particular para se interessar por crianças. Cada um de nós adere, de acordo com as vivências do passado, a uma ideologia coletiva de interesse pela pessoa e pela personagem da criança. Os adultos podem desprezar, detestar, amar, ou venerar a criança, mas a nenhum adulto a criança pode ser indiferente nem à própria infância dos outros. Cada um de nós vive com a sua própria experiência infantil. Cada um de nós aprendeu a guardar para si certas emoções, deceções e humilhações. Cada pessoa guarda um segredo. O segredo do homem é a própria infância" (João dos Santos: Jornal da Educação, fevereiro, de 1981). As memórias da nossa infância permanecem para sempre e são um elemento fundamental na estruturação da nossa personalidade, das nossas motivações, conquistas, amizades e também da escolha dos nossos percursos de vida. O brincar na infância é, de facto, um comportamento exemplar, para que todo o ser humano, em qualquer idade, mesmo na terceira idade, o aprenda a utilizar para que a sua vida seja mais prazerosa. Brincar e ser ativo é busca de prazer, de capacidade de resiliência, de capacidade adaptativa e, portanto, o brincar deverá acompanhar-me durante toda a vida (é uma atitude mental). Ao contrário do que muita gente pensa, deveríamos brincar de forma regular, para estarmos bem ao nível da saúde mental, saúde física, saúde emocional e relacional. Há muitas pessoas adultas que já deixaram de brincar, e muitas perderam a sua memória das brincadeiras de infância, o que é ainda mais grave. Como se apagaram essas memórias de infância nos adultos dos nossos dias que são hoje pais, educadores, cuidadores, etc. e não conseguem perceber que os seus filhos ou alunos, deveriam ter o direito de ter acesso a experiências similares às da sua infância? Onde estão hoje as memórias dos adultos sobre a sua infância? Como se justifica esse apagão? Como é que se desconstrói este medo existente na cabeça dos adultos em deixar que as crianças brinquem livremente? Deixar de brincar na fase adulta e não permitir que as crianças o possam fazer é um erro que se pode pagar muito caro mais tarde. Quando um adulto deixa de brincar, morre mais cedo e a sua longevidade diminui. Brincar é uma forma de prolongar o significado da vida. Viemos ao mundo com que objetivo? É claro que há objetivos de produtividade e de sobrevivência, mas também há objetivos de prazer, de qualidade de vida e, portanto, quem não sabe brincar com os outros, consigo próprio, em diferentes contextos, perde o significado da sua existência e passa a viver em sofrimento e tristeza. O mundo mudou e os medos dos adultos foram-se acumulando ao longo do tempo sobre o conceito de segurança, proteção e monitorização doentia das crianças durante o seu desenvolvimento. Não existem mais perigos do que no seu tempo de crianças: existem mais automóveis no espaço público e uma urbanização pouco amiga das crianças em oportunidades de tempo e espaço para brincarem livremente e serem mais ativas. Uma agressão sistemática de informações negativas de por parte dos órgãos de comunicação social sobre "casos passados com crianças" é também responsável por esta acumulação excessiva de medo e proteção das crianças por parte dos adultos. Não somos saudosistas do passado, mas é urgente fazer formação parental e escolar sobre o direito das crianças do nosso tempo, terem o direito a viverem a sua infância de forma livre em casa, na escola e na comunidade e adquirirem competências fundamentais necessárias no seu desenvolvimento individual e coletivo. As crianças não podem continuar a ser "reclusos" em escolas e horários escolares a tempo inteiro que as tornam sedentárias. Esta situação pode ser considerada uma negligência, por não respeitar os seus direitos a serem crianças com liberdade, autonomia, risco, brincar livre e aprendizagem cooperativa, democrática, humanista, ecológica e participativa. Também não deveriam estar dependentes da escravização do trabalho atípico dos pais, que na sua generalidade vivem em situações precárias ou em sobrevivência de vida. É exigível que se desenvolvam políticas públicas que dignifiquem também o tempo disponível dos pais para educarem os seus filhos e também que se altere o atual modelo de gestão do tempo escolar das crianças onde passam a maior parte da sua existência nos primeiros anos. Os estudos disponíveis de investigação sobre a privação do brincar, ser ativo e relacionamento afetivo nas primeiras idades, indicam que pode provocar um menor desenvolvimento de áreas importantes do córtex pré-frontal e edificação de um cérebro pró-social, aparecimento de problemas de comportamento negativo ou inadequado (violência, "bullying", indisciplina, etc.), problemas de sucesso escolar, relações sociais comprometidas entre pares, tendências para problemas com a justiça e difíceis transições para a adolescência e idade adulta. Necessitamos de uma lei laboral que seja amiga da família e amiga dos cidadãos. Acreditamos que a nossa democracia possa vir a alterar-se substancialmente nas próximas décadas, no sentido de haver um maior equilíbrio nestas matérias de direitos das crianças, quando relacionamos estas políticas existentes em Portugal e os restantes países que fazem parte da Comunidade Europeia, onde a qualidade de vida é um bem precioso e é um objetivo absolutamente fundamental nas políticas públicas.

De facto, os primeiros anos de vida são absolutamente essenciais para que as crianças tenham múltiplas experiências, com algum grau de liberdade para poderem assimilar, de forma apropriada, um conjunto de largas e diversivas experiências de aprendizagem, que permitam desenvolver a sua capacidade de autodesenvolvimento e autodeterminação. Por isso é que é tão importante a creche e o jardim de infância e, também, uma grande parte do primeiro ciclo, para que as crianças tenham a possibilidade de passar por todas estas experiências. O brincar e ser ativo é o melhor instrumento, a melhor ferramenta para a aprender as coisas significativas que são essenciais para o futuro. João dos Santos, aliás, dizia que tudo se aprende até aos seis anos, depois, repete-se o que já se conhece. Isto é esquecido na escola porque estamos a ensinar tudo à pressa, a querer que as crianças tenham logo resultados imediatos. Somos o animal com a infância mais longa, andamos em média 30 anos sem fazermos nada completamente "improdutivos" e ainda bem que nascemos imaturos. Somos o animal que nasce mais imaturo com imensas vantagens para o nosso desenvolvimento e capacidade adaptativa. Seria bom a possibilidade de existência de um sistema educativo na perspetiva de dar tempo ao ritmo de desenvolvimento de cada criança em função das suas motivações e talentos, sem impor expetativas exageradas dos pais e das instituições educativas na pressa de obter resultados. As aprendizagens escolares formais e informais, não vêm só de fora para dentro, vêm, acima de tudo, de dentro para fora. As crianças também têm necessidade de demonstrar aquilo que querem aprender e não aquilo que o adulto exige que ela aprenda. Aqui está um grande problema que a escola vive, ainda, atualmente: quando é que há consenso entre perguntar o que queres aprender e aquilo que eu acho que deves aprender?  Esta perceção de que só aprendemos com significado pela experiência o que sentimos, deveria constituir uma preocupação em reavivar nos pais e nos professores a importância das suas memórias de infância.

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