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As jóias também podem ser arma política, diz a 2.ª Bienal da Joalharia Contemporânea

As jóias também podem ser arma política, diz a 2.ª Bienal da Joalharia Contemporânea

O evento arranca com duas exposições no Museu do Tesouro Real. Jóias para a democracia homenageia 60 mulheres que contribuíram para a liberdade, numa celebração também dos 50 anos do 25 de Abril.

O 25 de Abril é mote para a 2.ª Bienal da Joalharia Contemporânea, que acaba de arrancar no Museu do Tesouro Real, no Palácio da Ajuda, em Lisboa. A Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea (PIN) convidou 60 artistas joalheiros a contarem a história de mulheres que “tenham tido um papel na luta pela democracia em Portugal”, explica a presidente e curadora, Marta Costa Reis, ao PÚBLICO. A mostra Jóias para a Democracia fica patente a partir desta quinta-feira até 30 de Junho.

Ao centro da sala, está uma enorme mesa amarela com as peças dispostas como se estivessem na mesa de um cirurgião. Não são bisturis, mas jóias com o poder de serem armas políticas. “A joalharia continua muito ligada ao feminino. Onde é que estão as mulheres no 25 de Abril? Antes disso, a mulher não existia no espaço público”, começa por reflectir Marta Costa Reis.

A mulher podia não existir publicamente antes de 1974, mas estava lá e a prova são estas 62 peças, que lembram a importância delas para a construção da democracia. Não são homenageadas apenas mulheres portuguesas, mas também algumas brasileiras, como Elis Regina. “Os artistas foram livres de escolher quem queriam homenagear. Portanto, temos de tudo: de mulheres anónimas às que todas conhecemos.”

A primeira homenagem é feita pela própria PIN, que dedica a Bienal de Lisboa ao poema de Sofia de Mello Breyner Andersen, A Madrugada Que Eu Esperava. Mas há outras mulheres igualmente conhecidas, como Odete Santos, que inspirou Porta para a liberdade de Susana Gorjão, ou Manuela Eanes para quem Eugénia Quartin fez um colar com 40 pérolas (uma das imagens de marca da ex-primeira-dama) — em celebração também pelos 40 anos do Instituto de Apoio à Criança (IAC), fundado por Eanes.

O colar para Manuela Eanes Rui Gaudêncio Peça de Catarina Silva Rui Gaudêncio Fotogaleria O colar para Manuela Eanes Rui Gaudêncio

As pérolas estão também presentes em Asas para voar, que evoca Snu Abecasis com alguns dos seus objectos favoritos, como um livro da editora Dom Quixote, que fundou, três pregadeiras com valores da democracia, as flores ou um ursinho de peluche. “A artista Kaia Ansip é disléxica e descobriu que Snu Abecasis também era. Então, se olharmos com atenção, vemos que as palavras têm erros”, detalha Marta Costa Reis.

Entre as anónimas, está a mãe de Valentim Quaresma e todas as militantes do Movimento Democrático das Mulheres (MDM). O artista lembra-se de ir às reuniões com a mãe, após o 25 de Abril, e de deixar inspirar pela luta daquelas mulheres pela liberdade, como escreve na memória descritiva. A peça inclui o alfinete de peito do MDM que pertenceu à sua mãe, bem como um pequeno relógio (tema que Quaresma utiliza frequentemente nas suas criações) e umas asas de liberdade.

Valentim Quaresma Rui Gaudêncio Snu Abecasis de Kaia Ansip Rui Gaudêncio Fotogaleria Valentim Quaresma Rui Gaudêncio

O desafio é percorrer a exposição, tentando adivinhar quem é a homenageada da peça em questão — uma pista: há duas jóias dedicadas a Maria Lamas. Há alusões mais literais, como a boquilha de Natália Correia, de Teresa Milheiro, que aqui se transforma num Instrumento de Caça. A mesma artista vai apresentar a solo na Galeria Zé dos Bois, integrada no programa da Bienal de Joalharia Contemporânea de Lisboa. “É uma artista que tem trabalhado muitos temas políticos. Portanto, fez-nos sentido mostrar o trabalho dela”, reflecte a responsável.

Foto “Matraca" de Marília Maria Mira, em homenagem a Maria Lamas Rui Gaudêncio Tiaras provocadoras

A exposição das Jóias para a Democracia vai desaguar na mostra seguinte, Tiaras Contemporâneas, que “entra pelo cofre” do Museu do Tesouro Real, onde está a colecção de joalharia e ourivesaria da monarquia portuguesa. “Um dos nossos objectivos é fazer com que o museu não esteja parado na época da colecção, mas que seja uma ponte tanto para o presente, como para o futuro”, enquadra Nuno Vale, director executivo da instituição.

As tiaras da exposição em nada se comparam às utilizadas pelos príncipes e princesas, são uma reinterpretação contemporânea, carregada, por vezes, de ironia. A ideia surgiu inicialmente em 2018, quando Catarina Silva, curadora da mostra e responsável pelo departamento de joalharia do Ar.Co, convidou antigos alunos, como Joana Vasconcelos, para este exercício criativo. Agora, volta a expor algumas dessas peças, dando-lhes nova roupagem, e acrescentando dez novos artistas.

Para exemplificar a provocação de algumas tiaras, Catarina Silva aponta para as peças de Grace Miell, “uma artista britânica que reinterpretou as coroas da monarquia britânica, usando umas pipetas de gás hilariante”, proibidas no Reino Unido. Também num jogo de ilusão, o neerlandês David Bielander cria peças em prata e ouro branco que mimetizam a textura de um cartão. Visualmente é um engano que só o peso dos materiais consegue esclarecer o cérebro.

Foto As coroas de Grace Miell Rui Gaudêncio

A Tiaras Contemporâneas e a Jóias para a Democracia vão ser dinamizadas com diversas actividades, para todas as idades, no Museu do Tesouro Real. A programação completa pode ser consultada no site oficial, mas destaca-se, a 25 de Abril, uma conversa com artistas e mulheres homenageadas, a reunir a artista Catarina Silva, a cineasta Margarida Gil e a homenageada Aurora Rodrigues.

As duas exposições marcam o arranque da 2.ª Bienal da Joalharia Contemporânea, que terá, ainda, como ponto alto a exposição Madrugada, co-organizada pelo Mude (Museu do Design e da Moda), a arrancar no final de Junho, no Palacete dos Condes da Calheta, em Belém. “Não sendo um museu dedicado às artes, entendemos o design como uma perspectiva ampla e a joalharia cruza-se aqui obviamente com a expressão artística”, analisa a directora do Mude, Bárbara Coutinho, que reforça a importância do tema. “É fundamental voltar a reforçar e debater o que é, o que foi este conceito de liberdade de expressão, sobretudo no momento em que estamos a viver”, termina.

Nas Tuas Mãos de Leonor Silva Foto

A joalheira Leonor Silva também transforma em jóia um dos símbolos do 25 de Abril, o cravo. “É muito mais do que uma flor, simboliza o fim da ditadura e a afirmação da liberdade”, diz a artista, em comunicado. Na Tua Mão é o mote para um anel e uma pregadeira que são “um grito de liberdade”.

O anel tem 50 rubis, em alusão aos 50 anos da Revolução dos Cravos, e uma estrutura que permite rodar e ver, ora o cravo em liberdade, ora por detrás das grades. A pregadeira, que faz lembrar o porta-chamas olímpico, segue a mesma lógica, com uma estrutura rotativa com o cravo ao centro, em tecido.

O carácter político é uma das marcas da assinatura de Leonor Silva. Uma das suas peças mais icónicas é a Happy Birthday Mr. President, criada a pensar num presente que Donald Trump ofereceria a uma amante. “No dia em que as minhas peças não causarem emoções, então é porque não estou a cumprir a minha função”, declarava a artista, ao PÚBLICO, em 2021.

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