www.sabado.ptPedro Proença - 17 abr. 23:10

Alcunhas, Açaí, Papaias e Sensacionalismo

Alcunhas, Açaí, Papaias e Sensacionalismo

Opinião de Pedro Proença

Corria o ano de 1890 quando o então jovem empresário americano e futuro magnata da comunicação social, William Randolph Hearst, proferiu a mítica frase "If it bleeds it leads".

Há 114 anos, William Randolph percepcionou que o crime e todos os aspectos relacionados com a justiça criminal captavam o interesse geral da população acima de qualquer outro conteúdo noticioso.

Não fugindo a esse paradigma, a comunicação social portuguesa tem revelado nas últimas décadas um apetite voraz e crescente sobre notícias envolvendo processos judiciais, tornando o segredo de justiça alvo de acesa discussão.

A comunicação social escancarou as portas das salas de audiências dos tribunais ao público em geral, transformando os telespectadores e os leitores em juízes, cuja opinião sobre os casos é, na maior parte das vezes,  formatada pelas acusações do Ministério Público amplamente reproduzidas pela comunicação social. Tais acusações passam assim a valer como sentenças para a opinião pública por mera adesão emocional, num processo que alguns autores apelidam de "emocionalização" da justiça.

O problema é que as emoções não são propriamente compatíveis com a justiça penal e os destinatários dessas notícias, na sua grande maioria, têm uma escassa experiência directa do sistema de justiça, tornando a sua opinião dependente da realidade veiculada através da comunicação social. O resultado é que no Tribunal da opinião pública não existe presunção da inocência e os visados pela justiça criminal, ainda que sejam absolvidos, nunca mais se livram do estigma de um dia terem sido julgados como suspeitos da prática de crimes.

Sobre esta realidade, e porque pleno de actualidade, não posso deixar de referenciar um dos processos judiciais do momento, precisamente o que envolve o julgamento daquele, que segundo a comunicação social nacional, é o maior traficante de droga português.

Perversamente baptizado pela comunicação social como "Processo do Xuxas" por referência à alcunha do principal arguido, a respetiva mediatização tem passado pela divulgação exaustiva do teor da acusação do Ministério Público, apresentada à opinião pública travestida de verdade absoluta e incontestada, que assim formou já a sua convicção sobre o caso.

O mais espantoso é que a referenciação pejorativa do processo em causa como o "Processo do Xuxas" contaminou o próprio Conselho Superior de Magistratura, que de forma pouco isenta, proferiu um despacho sobre um requerimento da Senhora Juíza Presidente do Colectivo que está a julgar o caso, referindo-se ao processo por "Processo do Xuxas".

Sem olvidar que, de acordo com um inquérito realizado em 2021 pela Rede Europeia de Conselhos de Justiça (RECJ), Portugal é um dos países onde os juízes mais consideram estar sujeitos às pressões externas, como a comunicação social ou as redes sociais, devo referir que, como advogado defensor de um dos arguidos em julgamento nesse processo, resta-me fazer fé plena na capacidade e competência do colectivo de Senhoras Juízas de julgar o caso sem cederem à pressão da comunicação social e do tribunal da opinião pública.

No mais, tudo o que posso dizer é que tem havido sessões desse julgamento em que se tem falado mais de fruta, mais concretamente de açaí e de papaias e das alcunhas dos arguidos, do que de droga. A opinião da grande maioria dos diversos Ilustres Advogados defensores dos arguidos neste processo é que já participou em julgamentos de processos de tráfico de droga em que estavam em causa muito maiores quantidades de estupefacientes e de dinheiro.

Afinal, o epíteto de "maior traficante português", usado pela comunicação social para se referir ao principal arguido neste processo, não passa de um artefacto linguístico usado para agarrar a atenção do público e assim garantir uma máxima mediatização do caso.

A consequência é que esse arguido nunca mais se vai livrar de ser o "Xuxas, o maior traficante português", independentemente do que o Tribunal decidir.

Termino esta crónica citando um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 2008, segundo o qual constitui acto ilícito a divulgação de actos desonrosos e criminosos imputados a determinada pessoa, cujo nome passa a ser facilmente identificado quando a notícia tenha como fonte a acusação do Ministério Público. No mesmo Acórdão, o STJ refere que a repetida divulgação de notícias nas condições acima indicadas, e que constituam mera ressonância da acusação do M.P., adquire um efeito ainda mais gravoso, demolidor e perverso, uma vez que fazem consolidar na opinião pública as imputações aos arguidos.

Neste processo, por muito que se fale em audiência de julgamento de açaí, papaias e alcunhas em vez de droga, os efeitos demolidores das notícias sobre a pessoa dos arguidos são já irreparáveis.

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