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Carta aberta aos deputados e deputadas da AR: violação como crime público

Carta aberta aos deputados e deputadas da AR: violação como crime público

É nossa convicção que, independentemente da idade da vítima ou de o seu agressor ter ou não uma relação de proximidade com ela, a violação deve ser sempre um crime público.

O Projecto de Lei n.º 681/XV proposto pelo Grupo Parlamentar do Partido Socialista (PS), relativo aos crimes contra a liberdade sexual, dá dois passos importantes na direcção certa: por um lado, reconhece que o prazo de seis meses para que a vítima apresente queixa por crimes contra a liberdade sexual “pode revelar-se insuficiente”, propondo alargá-lo para um ano; por outro, ao propor a dispensa de prova de insuficiência económica por parte das vítimas, reduz o quadro de desigualdade social, concedendo-lhes apoio judiciário com natureza urgente e o imediato acesso a aconselhamento jurídico, à semelhança do que já acontece relativamente às vítimas de violência doméstica. Este projecto foi aprovado na generalidade pela Assembleia da República, seguindo-se agora a sua discussão na especialidade, que se espera poder gerar um amplo debate público.

É precisamente para esse amplo debate público que as signatárias da presente carta aberta pretendem contribuir, por considerarem que é preciso ir mais além, e que o momento certo para o fazer é precisamente agora. É nossa convicção que, independentemente da idade da vítima ou de o seu agressor ter ou não uma relação de proximidade com ela, a violação deve ser sempre um crime público, e, portanto, passível de denúncia por qualquer pessoa que dele tenha conhecimento, pelos motivos seguintes.

Em primeiro lugar, consideramos o argumento da revitimização por via do processo penal pouco convincente. Associada à violência psicológica do processo, um dos principais argumentos apontados é o da vergonha. Só que, ao pretender poupar a vítima da vergonha que esta possa sentir por se vir a saber que foi violada, estamos, no fundo, a usar a discriminação milenar de que as mulheres são vítimas para perpetuar essa mesma discriminação, mantendo sobre este crime um manto de vergonha e de silêncio. Ora, a lei penal deve ser pedagógica neste aspecto e contribuir para colocar a vergonha onde ela efectivamente pertence: na esfera do violador, e não de quem foi violado. Além disso, sabemos que apenas 9% das vítimas desconhecem o seu agressor, o que leva a que estejam muitas vezes sujeitas a pressões por parte do próprio agressor, da família ou de amigos para não denunciarem. Tornar este crime público é aliviar-lhes um pouco o peso desse duro fardo.

Fazê-lo significa precisamente libertar as vítimas do ónus de apresentarem queixa para que se faça justiça, reconhecendo-se assim que o bem jurídico em causa – a liberdade sexual – é de tal forma precioso que o crime de que foram vítimas agride não apenas as próprias, mas a comunidade como um todo. De resto, a investigação decorre em segredo de justiça e no julgamento de crimes contra a liberdade sexual ou de violência doméstica podem ser aplicadas estratégias de protecção da vítima, não se vislumbrando qualquer razão para que não seja também assim relativamente ao crime de violação de pessoa adulta. Não é por se tratar de um crime público que os detalhes da violação sofrida serão discutidos na praça pública.

Em segundo lugar, entendemos existir actualmente uma injustificada discrepância valorativa na lei penal, ao qualificar os mesmos factos como crime público ou semipúblico consoante a idade da vítima ou em função da relação prévia que esta tenha, ou não, com o agressor. Actualmente, se a vítima for menor, o crime será sempre público, por caber no tipo penal de abuso sexual de menores. Se o agressor for alguém próximo da vítima, poderemos estar no âmbito do crime de violência doméstica, também ele público. Cabe então perguntar: por que motivo uma pessoa adulta violada por um desconhecido é menos merecedora de protecção pela comunidade? Esta desprotecção é particularmente grave perante os dados do Relatório Anual de Segurança Interna de 2022, onde se verifica um aumento de 6,4% dos casos em que o agressor é desconhecido da vítima. Assim, não vislumbramos nenhuma razão atendível para esta discriminação em função da idade da vítima ou da sua proximidade com o agressor, considerando existir na lei penal actual uma clara violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da nossa Lei Fundamental.

Em terceiro lugar, o argumento da protecção da autonomia corporal da vítima também não colhe, pois ninguém é forçado, num Estado de direito, a submeter-se a exames médicos não consentidos. Sugerir o contrário é uma aberração jurídica, uma ofensa aos profissionais de saúde, e constitui um espantalho argumentativo. Para além disso, cabe também ao Estado criar as condições necessárias para proteger as vítimas e estas se sentirem confortáveis e seguras no processo de colecção e preservação de provas.

Em quarto lugar, importa ter em conta a probabilidade da repetição do crime. Uma vez que apenas uma ínfima parte dos crimes de violação são reportados, os estudos internacionais divergem no apuramento de dados concretos; porém, a taxa de repetição é considerada elevada. Um violador solto é, assim, um violador que fará, muito provavelmente, novas vítimas. Por esse motivo, torna-se imperativo contrabalançar a relutância que a vítima possa eventualmente sentir em reviver o crime de que foi vítima com os fins de prevenção geral e especial das penas, no sentido de impedir a repetição do crime e desencorajar, de um modo geral para toda a comunidade, a sua prática.

No cenário actual, em nome de uma alegada protecção das vítimas contra uma potencial revitimização, descuramos em absoluto as potenciais vítimas do futuro. Isto porque o desencadeamento do processo penal depende exclusivamente da apresentação de queixa por parte da vítima ou daquilo que o Ministério Público entenda ser “o interesse da vítima”. Daqui resulta que o interesse das potenciais vítimas futuras e o interesse geral da comunidade em protegê-las não é, em nenhum momento e de nenhuma forma, tido em conta. Consideramos esta solução desequilibrada e injusta.

Assim, entendemos que o Estado deve, em primeira linha, cumprir o seu dever constitucional de formar profissionais capazes de estar à altura das exigências específicas da investigação deste crime, formando polícias, advogados/as, procuradores/as, juízes/as e profissionais de saúde empáticos, conscientes das particularidades dos crimes sexuais e capazes de contribuir para a descoberta da verdade sem revitimizar quem já tanto sofreu. Argumentar com a potencial vitimização secundária das vítimas é escamotear este dever fundamental de protecção das vítimas que incumbe ao Estado.

Além disso, e enquanto este desígnio de acolhermos de forma empática e competente as vítimas deste crime não possa ser plenamente alcançado, consideramos que deve ser reservado às vítimas o direito de não colaborarem com a investigação e julgamento, se assim o entenderem. Pese embora o efeito terapêutico que comprovadamente tem esta sua reclamação de agência sobre o que crime de que foram vítimas, consideramos que, em última análise, deve ser-lhes reservado o direito de não reviverem essa experiência se não o desejarem, sendo expressamente excluídas do âmbito de aplicação do crime de desobediência se se recusarem a prestar declarações enquanto testemunhas, para que não restem quaisquer dúvidas quanto à não-exigibilidade do seu testemunho.

Por último, importa salientar que embora a prova pericial e o testemunho das vítimas sejam elementos de prova muito importantes no âmbito do crime de violação, não serão sempre os únicos, podendo existir prova testemunhal ou mesmo documental (vídeos de videovigilância, por exemplo). À luz do Direito actualmente vigente, estes meios de prova não chegam sequer a poder ser utilizados se a vítima não der o necessário impulso processual, com a apresentação de uma queixa. Ora, as signatárias desta carta aberta consideram que, no limite, deve ser reconhecido à vítima o direito de não colaborar com a investigação e julgamento, mas esta não pode, contudo, ter o poder de impedir o Estado de perseguir esse crime por outros meios que estejam à sua disposição, pois devem entrar aqui em linha de conta os fins de prevenção geral e especial das penas. Esta é a solução que consideramos equilibrada e justa, pois permite proteger tanto a autodeterminação da vítima como a comunidade em geral.

É também importante relembrar os mais de 100 000 signatários e signatárias da “Petição para a conversão do crime de violação em crime público”, cuja voz não pode ser ignorada, bem como o facto de que o regime actual não respeita o acordado na Convenção de Istambul, que entrou em vigor em 2014 e foi ratificada pelo Estado português.

Pelos motivos expostos, as signatárias pedem aos deputados e deputadas à Assembleia da República que, na fase da especialidade, se possam acolher não só os contributos do Projecto de Lei do PS, mas também dos Projectos de Lei que tenham como objectivo consagrar a natureza pública do crime de violação.

Signatárias:

Inês Melo Sampaio - Membro do Serviço Jurídico da Comissão Europeia

Sofia F. Santos - Investigadora no ISCTE

Catarina Silva - Estudante de Direito e Autarca em Arroios

Inês Narciso - Investigadora no ISCTE

Alexandra Domingos - Economista e Autarca em Cascais

Alexandra Mota Torres - Autarca em Lisboa

Ana Catarina Carrasco - Jurista, Pós-Graduação em Direito da Igualdade

Bárbara Miranda - Mestranda em Ciência Política no ISCTE

Carla Madeira - Presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia

Carla Sofia Morgado - Jurista

Cátia Ricardo - Designer de Comunicação

Cátia Rosas - Engenheira do Ambiente

Diana Pais - Solicitadora e Autarca em Castanheira de Pera

Diana Prudêncio - Assessora de Comunicação e Autarca em Marvila

Filipa Gouveia - Bióloga e Empresária

Flávia Pimenta - Estudante de Direito e Técnica de Serviço de Gestão do Território

Inês Drummond - Vereadora na CML

Inês João Rodrigues - Estudante de Solicitadoria do IPCA

Inês Monteiro - Terapeuta da fala e Autarca em Penafiel

Joana António - Autarca em Odivelas

Maísa Sofia Bastos - Inspectora Tributária

Maria Santos - Jurista

Mariana Borges País - Administrativa

Sara Rodrigues - Técnica de Arquitectura

Sara Silva - Farmacêutica e atleta de Rugby

Sílvia Ferreira - Funcionária Pública no Ministério da Educação

Sofia Pereira - Mestranda de Negócios internacionais no ISCAC

Sofia Sá - Actriz

Susana Escária - Economista, Secretaria Geral do Ambiente

Teresa Fragoso - Especialista em Igualdade de Género e Políticas Públicas

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