www.publico.ptpublico@publico.pt - 31 mar. 14:53

Mobilidade no meio urbano pós-pandemia – Lisboa tem de mudar de paradigma

Mobilidade no meio urbano pós-pandemia – Lisboa tem de mudar de paradigma

Esperava-se que o teletrabalho implicasse entradas e saídas desfasadas das cidades, reduzindo os fluxos de tráfego, ou que a micromobilidade desse um salto definitivo. Mas não.

Ultrapassada a pandemia, que mau grado todos os malefícios associados, a começar pelos muitos que nos deixaram, nos trouxe mesmo assim alguns benefícios na forma como durante dois anos nos movemos, trabalhámos e relacionámos, seria de esperar que alguns desses benefícios perdurassem. Costuma ser assim nas crises, todos sofremos, mas no final algo de positivo subsiste.

Infelizmente, fazendo uma comparação entre o antes e o depois da pandemia, muito pouco mudou. Talvez com a exceção do teletrabalho e da normalização no que diz respeito à utilização de máscaras, tudo voltou àquilo que sempre foi.

Esperava-se, por exemplo, que a facilidade de trabalho remoto pudesse implicar entradas e saídas desfasadas das cidades, reduzindo os fluxos de tráfego, mas tal não se vê no trânsito que assola diariamente os meios urbanos. Esperava-se que a micromobilidade desse um salto definitivo em frente, com mais pessoas a escolherem bicicletas e scooters para se deslocarem. Mas não. Com exceção dos turistas, de alguns jovens e de quem quer fazer desporto pela cidade, a troca do veículo privado pela micromobilidade não é uma realidade que retire significativamente veículos das ruas.

Por exemplo, em Lisboa, antes da pandemia, estimava-se a entrada de cerca de 370.000 veículos. Juntando os cerca de 200.000 veículos com origem na própria cidade (dados IMT), chegávamos a um rácio difícil de igualar: circulava pela cidade um veículo por residente. E, pelas atuais filas de transito, a situação após a pandemia não é significativamente diferente.

Ora qualquer poder político, local, regional ou nacional, consegue perceber que chegámos a uma situação limite, em que é preciso parar para pensar, pois o que nos trouxe até aqui não vai mudar, como a pandemia prova.

Claro que existem quick-in que, não estando ainda implementados, se devem implementar o quanto antes. Por exemplo, os organismos públicos devem adotar vários horários de entrada e saída, forçando de algum modo com isso as empresas privadas a fazerem o mesmo; não se percebe por que razão não são criados corredores bus nas principais vias de entrada nas cidades, ou que não se faça, pelo menos, a experiência, medindo os resultados; a criação de ciclovias, sempre e quando as mesmas sejam possíveis, deve ser acelerada.

Mas estas são medidas que, embora apontem no sentido certo, dificilmente vão conseguir mudar a face da mobilidade, nomeadamente em Lisboa, onde o automóvel privado continua a reinar. Para mudar o que hoje temos, é preciso uma mudança de paradigma, e é isso que me traz aqui hoje.

Olhando para outras cidades capitais, vemos que aí foram feitos investimentos em infraestruturas públicas de transporte, restringindo drasticamente o uso de automóvel privado, com a criação de parques de estacionamento dissuasores, portagens e limitação do estacionamento com preços proibitivos.

Tal envolveu investimentos colossais, cada vez mais difíceis de realizar, em especial no nosso país, dadas as restrições do erário público, o que não significa que não se devam criar parques de estacionamento junto aos transportes públicos à porta das grandes cidades, nem que não se façam investimentos nomeadamente ao nível do metropolitano. De qualquer modo, não é de esperar que a capacidade de investimento do Estado tenha a dimensão e a rapidez necessárias para inverter a situação atual, que tende a agudizar-se, pois vivemos numa sociedade crescentemente urbanizada. É preciso algo mais.

E esse algo mais pode vir de esquemas de transportes partilhados, capilares e baratos, rápidos e fáceis de implementar, aproveitando a tecnologia, que está sempre por detrás das disrupções.

Continuando em Lisboa, se antes do aparecimento dos veículos hoje denominados TVDE alguém profetizasse o sucesso que os mesmos iriam ter em tão pouco tempo, ninguém acreditaria. A razão para esse sucesso foi simples: baixo custo e melhor serviço.

Imaginemos então que o preço era ainda mais barato, porque o condutor do TVDE simplesmente não existia, como é o caso dos veículos autónomos. Será que numa família se justificaria ter um segundo e um terceiro veículo? Será que, para quem vem de fora da cidade, não valeria mais a pena levar o carro privado rumo à periferia mudando aí para um veículo autónomo partilhado?

A evolução tecnológica confronta-nos com desafios permanentes, e este é talvez dos mais impactantes: vamos ter mobilidade autónoma nas cidades, a conveniência e o baixo custo poderão fazer toda a diferença no que diz respeito à adoção de formas partilhadas e autónomas de mobilidade, reduzindo a fatura que os transportes atualmente assumem nos orçamentos familiares, melhorando os tempos de deslocação e a carga poluente.

A questão é quando e aí, como sempre, podemos ser reativos ou proativos. Pois parece-me que nomeadamente a cidade de Lisboa tem todas as condições para proativamente liderar a implementação desta solução, por vários motivos: porque um carro a circular por habitante não é aceitável; porque o país não tem recursos para investimentos avultados em infraestruturas de transportes, levando o metropolitano às várias áreas suburbanas; e também porque tem uma zona da cidade perfeita para aí realizar uma experiência com um operador internacional de mobilidade autónoma, a Baixa.

Em concreto, a Baixa é retilínea e razoavelmente plana, não envolvendo por isso grande complexidade de circulação, e por outro lado não tem nesta altura um volume de tráfego que seja drasticamente afetado caso um veículo autónomo pare por qualquer razão.

Claro que, para fazer na Baixa um projeto de veículos autónomos partilhados, terá de existir a montante um conjunto de condições, como um quadro regulatório (é preciso levar em linha de conta que em caso de acidente não existe condutor), seguros associados e uma infraestrutura de carregamento e preparação dos veículos, só para citar alguns exemplos mais imediatos.

Algum dia vai ter de ser, e quanto mais cedo esse dia chegar, melhor será para a cidade

Para tal implementação, é necessário um operador, e já existem vários a operar, como a Waymo (Google), em Phoenix e em São Francisco, a GM em São Francisco ou a Apolo Baidu em Pequim, entre outros. Se pensarmos nas trotinetes, percebemos que as várias empresas internacionais não deixaram Lisboa para trás, e o mesmo acontecerá um dia com os veículos autónomos partilhados. De novo, a questão é quando, e aquilo de que aqui se fala é queimar etapas e tornar Lisboa no primeiro local europeu com uma tal experiência comercial, trazendo para Lisboa um operador que se esteja a lançar nos veículos autónomos partilhados.

Bem sei que parece um pouco futurista, mas algum dia vai ter de ser e, quanto mais cedo esse dia chegar, melhor será para a cidade, para quem nela vive e para quem nela trabalha. A tecnologia existe, podemo-nos posicionar para ter a nossa capital a liderar na Europa uma transformação que nos vai trazer inúmeros benefícios, basta que haja coragem política. Fica aqui o repto, transformar a Baixa Pombalina na primeira oferta comercial europeia de veículos elétricos autónomos partilhados.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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