expresso.ptJosé Conde Rodrigues - 9 fev. 10:48

A Europa e a era do tribalismo digital

A Europa e a era do tribalismo digital

Estamos submersos num dilúvio de informação, de ruído digital, de dados que se multiplicam exponencialmente, através da falsa autonomia do indivíduo e das suas histórias pessoais. Estamos submetidos a uma fragmentação exponencial, a uma balcanização do debate púbico

Os europeus, após o sacrifício da segunda guerra mundial, para muitos a última guerra civil europeia, pensavam viver eternamente na tranquilidade do sonho kantiano de paz perpétua. Uma vida feita de habitualidade, prosperidade, assente no crescimento económico contínuo, emprego seguro, apoios sociais inclusivos, num verdadeiro e muito germânico Estado Social de Direito. Por outras palavras, uma síntese quase perfeita entre capitalismo e democracia, entre liberdade e bem-estar, que esteve por detrás do sucesso do mundo ocidental nas últimas décadas.

Hoje, porém, e infelizmente, os europeus começam pouco a pouco a achar que essa síntese, esse modelo está a acabar. Os europeus estão paulatinamente a perder um propósito comum, um consenso partilhado sobre o presente, bem como uma visão prospetiva acerca do seu futuro. Muitos europeus sentem que as suas referências mais sólidas, as diversas ordens estabelecidas, estão por todo lado dissolver-se. A confiança dá, quase subtilmente, lugar à volatilidade. Vivemos em pleno desnorte e incerteza. O presente é tudo e o futuro deixa de fazer parte do horizonte humano.

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Por todo o lado proliferam as micronarrativas, as soluções mágicas, as soluções simples, para problemas complexos. Vive-se, sobretudo, uma crise da verdade, uma crise da factualidade reconhecida, que nos reporta para o tempo m��tico do tribalismo, agora na versão pós-moderna, digital. Não o tribalismo da família ou do pequeno clã, mas das grandes hordas, da multidão, da massa, como lhe chamou, premonitoriamente, Elias Canetti, ainda nos anos cinquenta do século passado. É contra ele que a Europa moderada tem de crescer de modo firme e comprometido.

Lembremo-nos que quando surgiram as redes sociais, quase só se viam as suas vantagens, ligando familiares e amigos, próximos e distantes, de uma forma até então impensável. Com o tempo emergiu o seu lado negro, a manipulação, a desinformação. Hoje, a inteligência artificial, na sua versão forte, generativa, ou geral, como aparece agora designada, promove facilmente a criação de textos, imagens e outros conteúdos não factuais. Com a aprendizagem das máquinas, a inteligência artificial exponencia mesmo as possibilidades perversas e totalitárias da tecnologia digital. E o perigo cresce, se pensarmos que há quem defenda esta senda, chamando-lhe garbosamente transhumanismo.

A Europa vive, assim, para além das crises, pandémica, da guerra, da inflação e dos juros altos, uma crise de sentido, uma crise narrativa, para usar as palavras de Byung-Chul Han. E o tribalismo das novas hordas digitais, conduzidas por bots e trolls ao serviço dos demagogos, dos homens fortes do momento, é o grande sinal dessa crise. Crise cuja consequência imediata é destruir, convocar o caos, para, como noutros momentos na história, criar um novo individuo, pós-humano, assim liquidando a sempre frágil e efémera democracia liberal.

Ao mesmo tempo, a Europa vive entalada entre um mundo americano, assente no capitalismo de mercado e um mundo chinês baseado no capitalismo de Estado. Ambos dominados pelo capitalismo de compadrio e da vigilância, que substituem a concorrência pelo monopólio, a realidade humana pelos dados e a livre escolha dos cidadãos pela infocracia.

Ora, a Europa precisa também de romper esse espartilho e salvar o capitalismo dos seus inimigos, quer à esquerda, quer à direita. Um capitalismo para todos e não apenas para alguns, a elite, fazendo-o regressar à sua génese, enquanto modelo económico de criação de riqueza, baseado em regras e instituições fortes, associadas eticamente a uma sociedade aberta.

Em suma, num tempo de moda woke, a Europa tem de acordar para os perigos da digitalização do espaço individual e das relações sociais, do espaço público e as suas respetivas consequências políticas. A era do tribalismo digital, tendo por detrás as poderosas ferramentas de inteligência artificial, já começou, e constitui uma das grandes ameaças ao modo de vida dos europeus. É preciso resistir ao canto de sereia por detrás do tribalismo digital, onde o ódio, o ressentimento e a violência, se alimentam do esmagamento da classe média, sem voz, prensada entre os muitos pobres e os muito ricos.

Não deixemos que a tecnologia digital tribalize as nossas sociedades, transformando-se numa nova religião, cujos fiéis, à escala do mundo, deixam de fazer as suas escolhas baseadas na razão e no sentimento humano. É que, ironicamente, através da digitalização e das suas últimas realizações, na robótica e na inteligência artificial, o homem acaba por criar na Terra os seres extraterrestres que tanto tem procurado no universo exterior. E o final pode não ser feliz.

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