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Visão | Otelo Saraiva de Carvalho: Auto-retrato em entrevista com o 25 de Abril em fundo

Visão | Otelo Saraiva de Carvalho: Auto-retrato em entrevista com o 25 de Abril em fundo

A entrevista a Otelo Saraiva de Carvalho por ocasião dos 30 anos do 25 de Abril

Confissões e memórias que nos mostram, de corpo inteiro, com luz e sombras, o comandante operacional da Revolução de 1974 e símbolo mais famoso do MFA, em Portugal e no mundo. Hoje sem atividade política, cuidando de árvores de fruto numa quintinha em Azeitão, Otelo Saraiva de Carvalho, 67 anos, tenente-coronel de Artilharia na reserva, dois filhos e três netos, reconhece erros e desvios – e faz diversas revelações

Esteve no centro da libertação e no olho do furacão. Chefe militar do 25 de Abril e comandante do COPCON, talvez ninguém como ele tivesse contribuído primeiro para o derrube da ditadura e depois para a perigosa “aceleração” do chamado processo revolucionário. Mas, recuando, conciliando ou baralhando tudo nos momentos decisivos, acabou por contribuir para evitar um novo totalitarismo. Generoso e ingénuo, contraditório e espetacular, impreparado para responsabilidades que não desejou e lhe atribuíram, ninguém foi mais amado e odiado do que ele. Quis um Poder (dito) Popular, meteu-se nas piores trapalhadas, passou quase cinco anos na cadeia. É Otelo Saraiva de Carvalho, o autor do notável livro Alvorada em Abril, diferente e igual a si próprio, com quem conversámos durante cerca de cinco horas e meia. Os excertos principais de uma entrevista que é também um documento e um auto-retrato

VISÃO: A revolução devora os seus heróis?

OTELO SARAIVA DE CARVALHO: Se eu posso ser tido como um dos heróis do 25 de Abril, não me considero devorado. Perdi todo o poder que detive, após a estabilização da democracia representativa, mas a revolução não me devorou. Pelo contrário, tenho imenso orgulho em afirmar que a nossa acção militar, que levou ao derrube do regime fascista, atingiu plenamente os objetivos que se propunha, de acordo com o Programa do MFA.

V: Quem faz as revoluções, muitas vezes acaba por ser afastado ou destruído por outros mais habilidosos ou preparados, ou porque quer impor uma linha que não triunfa…

OSC: Aconteceu isso comigo. Eu não quis impor, inicialmente, do ponto de vista político, qualquer linha diferente. O desenvolvimento do processo revolucionário criou em mim, porém, a convicção, ou o sentimento, de que era possível, com apoio do MFA, construir um novo tipo de sociedade, um regime de democracia direta, com uma pirâmide de Poder Popular até uma Assembleia Nacional de que emergisse um governo emanado do povo.

V: Quis transformar a revolução democrática, a que passou a chamar burguesa, em proletária?

OSC: Eu diria, dados os seus objetivos sociais, socialista. Mas houve um engano de muita gente e o primeiro engano foi meu, a primeira ingenuidade foi minha. Faltava-me, à semelhança do que acontecia com 90% dos meus camaradas, preparação e estrutura política.

V: Quando lhe surgiu pela primeira vez a ideia da necessidade de um golpe de Estado contra a ditadura?

OSC: Muito jovem, nos últimos anos do liceu, em Lourenço Marques, quando foram presos pela PIDE uns meus colegas mais velhos. Quando vim para a Escola do Exército comecei a pensar que, pertencendo às Forças Armadas, talvez isso permitisse, um dia, cumprir esse sonho. Até que as circunstâncias o tornaram possível.

V: Que circunstância principal?

OSC: A Guerra Colonial. Sem ela, não teria sido possível o 25 de Abril. Foram os 13 anos de guerra que provocaram o cansaço e a consciencialização política dos oficiais. Nas minhas duas comissões em combate (na terceira, na Guiné, estava em Bissau), a comandar companhias que participaram em inúmeras operações, dormindo debaixo das estrelas, atravessando rios com água pelo peito e a espingarda ao alto, secando a roupa ao sol, os soldados abriam-se comigo, falavam-me das condições de vida do povo nos campos das Beiras e do Alentejo ou dos operários nas fábricas. O que aumentou o meu desejo de participar numa acção que derrubasse a ditadura.

V: Mas, em concreto, quando é a primeira vez que tem a noção de ser possível realizar uma acção com esse objetivo?

OSC: Em 1973, numa conversa com o Vasco Lourenço, na Guiné. Ambos tínhamos a mesma perspetiva.
E foi aí, como se sabe, que ocorreram as primeiras reuniões de capitães. [Otelo fala depois, longamente, sobre os documentos e as reuniões preparatórias que se seguiram, na Guiné e na Metrópole.]

V: Da fase de preparação do 25 de Abril, quais foram para si os momentos mais emocionantes?

OSC: Primeiro, a intervenção do capitão Jorge Golias, em Agosto de 1973, ainda na Guiné, quando disse: “Nós não vamos lá com papéis e burocracia, temos é que fazer uma revolução armada e derrubar o Governo pela força.” Eu aplaudi, mas as expressões gerais foram de espanto e incredulidade, do tipo “que loucura é esta, não pode ser!”. E, em Novembro, uma intervenção do tenente-coronel Luís Banazol, que dá um murro na mesa, e afirma: “Nós temos é que pegar em armas, eu ofereço o meu batalhão e se ninguém me quiser acompanhar vou sozinho.”

V: Tudo correu bem; mas não foi demasiado confiante na preparação das operações militares de 25 de Abril?

OSC: Admito que sim. O pior foram os riscos que corri por altura do 16 de Março e depois dele. [Otelo recorda os principais acontecimentos relacionados com o prematuro e fracassado «golpe das Caldas» e as vantagens que, de qualquer modo, teve para lhe permitir ver como o regime reagia e respondia.] Por pouco não fui «apanhado» pela PIDE e se o tivesse sido era desastroso. O 16 de Março deu-se à revelia da direcção do Movimento e depois dele houve uma grande retracção. O Melo Antunes, por exemplo, disse-me que aquilo não podia ter acontecido e assim não alinhava.

V: Como é que o ‘recuperaram’?

OSC: Tive que lhe explicar, antes de ele partir para os Açores, a 23, o que ocorrera, garantindo-lhe que as coisas eram sérias e se estava a preparar uma última reunião da Comissão Coordenadora Executiva. Depois, o Vítor Alves e eu pedimos-lhe que elaborasse as bases programáticas do Movimento, o que ele fez e nos entregou no dia 22 à noite.

V: Que momento do dia 25 de Abril, no Posto de Comando da Pontinha, recorda com particular intensidade?

OSC: Vivemos aí horas de grande ansiedade e expetativa. O momento mais decisivo, para mim, foi o do telefonema do Spínola. Quando o Salgueiro Maia está no Largo do Carmo e o general é chamado para receber a «rendição» de Marcello Caetano, refugiado no quartel da GNR, Spínola diz que não pertence ao Movimento, telefona-me, conta-me a conversa e pergunta-me se pode deslocar-se ao Largo do Carmo para receber o poder das mãos do ainda presidente do Conselho. Eu tapei o bocal do telefone, interroguei o Vítor Alves e o Charais, e disse-lhe que sim, mandatando-o em nome do MFA. Foi a confirmação concreta, definitiva, de que o fascismo caíra e o Movimento triunfara.

V: Para si também foi um episódio especial por ser o mítico general Spínola, seu chefe na Guiné, a pedir-lhe ordens, não?

OSC: Isso representou a força do Movimento. Eu podia ter dito ao Spínola que não e indicar o Vítor ou o Charais, que eram do MFA, para receber o poder. Esse telefonema representou também a subordinação do Spínola ao MFA, que foi quem de fato derrubou a ditadura e conquistou o poder.

V: Não terá sido um erro não assumirem esse poder e integrarem vocês a Junta de Salvação Nacional, como o próprio Spínola sugeriu?

OSC: Na perspetiva do Vasco Lourenço, nós, MFA, deveríamos formar a Junta de Salvação Nacional sem recurso a generais. O Vítor Alves, por sua vez, dizia que se fôssemos nós a aparecer perante as câmaras de televisão soava um bocado a terceiro-mundismo e o reconhecimento internacional da revolução iria demorar. Pelo contrário, se os EUA e os outros países vissem generais com estrelas nos ombros, alguns com prestígio internacional, assumirem o poder, em vez de capitães e majores, a credibilidade da revolução era outra. Eu concordei plenamente com ele.

V: E agora, 30 anos depois, acha que fizeram bem ou mal?

OSC: Acho que fizemos bem. Apesar de ter pertencido à Junta um general, o Jaime Silvério Marques, que tinha sido detido pelo Movimento, e da luta que se desenvolveu imediatamente com o Spínola, que foi desde logo evidente ter o seu projeto pessoal. Projeto que passava por fazer «referendar-se» Presidente antes das eleições para a Constituinte, contra o previsto no Programa do MFA.

V: Foi o último a sair do Posto de Comando da Pontinha, meteu-se no carro, para casa, e à noite foi a Caxias, anónimo entre a multidão, para ver a libertação dos presos políticos… O que pensava fazer após a vitória do Movimento?

OSC: A minha sensação era apenas a da missão cumprida. Tinha assumido uma enorme responsabilidade e corrido muitos riscos, mas não pensava em nenhum papel especial, nem em nenhum cargo para mim.
E quando o Spínola visitou o Posto de Comando, ao fim da tarde de 25, para nos agradecer o que tínhamos feito (foi a única vez que nos abraçámos, com emoção), já vinha acompanhado do seu séquito e o Almeida Bruno, logo ali à nossa frente, com perfeito despudor, teve uma frase histórica “Meus amigos, acabou a bagunçada! Agora temos aqui ‘um general'”, começou ele a dar ordens e fazer nomeações para comandos de unidades! Eu, na segunda-feira seguinte, regressei à Academia Militar, onde era professor, e reiniciei as aulas como se nada tivesse acontecido.

V: E depois?

OSC: Passados uns dias, mandaram-me apresentar na Cova da Moura, onde estava instalada a JSN e o Centro de Operações, por pressão de Costa Gomes e Vasco Lourenço.

V: Participou na manifestação do 1.º de Maio?

OSC: Não. Assisti a ela da janela da casa do Rosa Coutinho, em frente ao estádio (hoje 1.º de Maio). Guardo, desse dia, a imagem de uma manifestação imensa, muito bonita, alegre e entusiástica, com grande espírito de fraternidade.

V: O que se passa depois consigo?

OSC: Cerca de dois meses mais tarde sou chamado a Belém e o Spínola diz-me que vou ser promovido a general de quatro estrelas, para ocupar o posto de Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA). Eu respondo-lhe que não aceito qualquer promoção e que o CEMGFA era, muito bem, o general Costa Gomes (CG). O que o Spínola queria era afastar CG, o único capaz de o confrontar a nível do poder máximo, colocando, no seu lugar, um jovem major, que ele pensava ser dócil e fácil de manipular.

V: Era, então, um homem da confiança de Spínola?

OSC: Isso é que é estranho, pois nunca fui um homem da sua confiança: não era spinolista, nem do Colégio Militar nem de Cavalaria, e tive contenciosos terríveis com ele na Guiné.

V: Mas, por pressão dos seus camaradas do MFA, é nomeado comandante do COPCON e da Região Militar de Lisboa. A 13 de Julho toma posse, aparecendo pela primeira vez sendo inesquecível o que disse e a forma como o disse…

OSC: Primeiro, para ser graduado em brigadeiro pelo Spínola, fui a Belém, de camisa de manga curta e colarinho aberto, para marcar logo diferenças. Depois, ao dar-me posse, o Jaime Silvério Marques (JSM) entrou numa de «eu gosto de ver o sorriso nos lábios dos jovens do MFA, e sempre que tiverem dificuldade eu estou aqui para lhes ensinar o caminho». Aborrecia-me esse paternalismo dos generais, que tinham vivido sempre à sombra do regime sem fazer nada contra ele, e eram de Conselhos de Administração o próprio Spínola, quando foi para Angola, em 1961 ou 62, já pertencia ao da Siderurgia. Por isso achei que devia lembrar ao Silvério Marques, o fato de os generais nunca terem feito nada para derrubar a ditadura e termos sido nós, jovens mas com a nossa experiência de guerra, a fazê-lo.

V: Aí começam os seus problemas… O que foi, de facto, o COPCON?

OSC: O COPCON, com uma estrutura de Estado-Maior reduzido, só com duas repartições, uma de Informação e outra de Operações, tinha uma missão estritamente militar: impedir qualquer atividade contra-revolucionária. E eu tenho consciência de que, enquanto seu comandante, extravasei largamente esses objetivos, aliás sem reparos do meu comandante direto, o general Costa Gomes, que me deu sempre rédea livre.

V: Como é que tudo principiou?

OSC: Eu chamei para trabalharem comigo oficiais brilhantes, a começar pelo tenente-coronel Artur Baptista, promovido por distinção por acções em combate em Angola. Forma-se uma excelente equipa, começa a haver uma grande desresponsabilização de quem exerce outras funções, sobretudo governativas, e começam-nos a chegar problemas gravíssimos, laborais, sociais, às vezes até pessoais e de saúde. Por exemplo, começam a fugir empresários, que fecham as empresas e levam o dinheiro, os trabalhadores vão ao Ministério do Trabalho e de lá mandam-nos para o COPCON! E eu, nós, assumimos isso. Talvez não o devêssemos ter feito, o que me teria livrado de uma grande carga de trabalhos.
Mas a minha perspetiva foi esta: se o MFA abriu as portas de esperança e no seu programa estava dito que iríamos dar especial atenção aos mais desfavorecidos, depois íamos abandoná-los e não resolver nada? Pensei que alguém tinha de tentar resolver esses problemas, se não o MFA desacreditava-se, e como tinha o poder do COPCON utilizei-o. Entendi ser esse o meu dever.

V: O que se foi agravando com o tempo.

OSC: Sim, sobretudo com as ocupações de terras. Em Fevereiro de 1975 comecei a receber delegações de trabalhadores rurais alentejanos que me diziam “o nosso primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, é muito boa pessoa, mas a lei da Reforma Agrária nunca mais sai, os agrários estão a levar para Espanha o gado e a maquinaria, as terras ficam incultas, quando ela sair com que ficamos?” Pareceu-me, de facto, grave, e perguntei-lhes se não tinham caçadeiras para o impedir e ocupar as terras. Eles responderam-me que sim, até já o tinham feito, mas depois, chamada pelos agrários, aparecera a GNR e expulsara-os, nas pontas das G-3. “Bom, então eu vou dar indicação à GNR para, no Alentejo, não atuar contra vocês.” E depois houve um milhão e 200 mil hectares de terras ocupadas… Lembro-me de, quando das primeiras ocupações, o Vítor Alves me falar, muito preocupado, e eu lhe contar o que acontecera. “Tu és maluco? Já viste o que vai acontecer?”, reagiu ele.

V: E Vasco Gonçalves?

OSC: Ficou muito zangado. Que eu estava a extravasar funções e a Reforma Agrária devia ser feita de acordo com a lei. Mas a lei nunca mais saía! É óbvio, reconheço, que excedi as minhas competências e funções, ao abrigo da chamada legitimidade revolucionária.

V: Isso não foi negativo, mesmo a prazo, para os objetivos que visava?

OSC: Talvez tenha sido negativo, mas só por uma razão: quando a revolução é travada, com o 25 de Novembro, tudo volta para trás. Foi uma utopia transformar o 25 de Abril de revolução burguesa em revolução socialista.

V: Qual a sua intervenção, e do MFA, no processo de descolonização?

OSC: A nossa intervenção, que não estava programada, foi decisiva. No meu caso, na véspera da partida de Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, para Lusaca, para o primeiro encontro com a Frelimo, logo a 6 de Junho de 1974, o Spínola chamou-me e mandou-me ir com ele, como elemento qualificado do MFA.

V: Para quê?

OSC: Para o vigiar. «Eu não tenho confiança nenhuma nesse gajo», disse-me Spínola. Lá fomos, o encontro foi presidido pelo próprio Presidente Keneth Kaunda, nós entrámos primeiro, ficámos de um lado de uma grande mesa, depois entrou a delegação da Frelimo, com o Samora Machel à frente, e ocupou o outro lado da mesa. Então, o Kaunda pediu às delegações que se cumprimentassem. E o Soares perguntou-me, baixinho: “Acha que lhe vá dar um abraço?” Eu respondi: “Se não o fizer, faço-o eu.” Todos nos abraçámos, com emoção.

V: Qual era a missão de Mário Soares?

OSC: Não regressar sem a garantia de um imediato cessar-fogo. E Soares cumpriu-a com brilhantismo. Só que o Samora disse mais ou menos isto: “Cessar-fogo, sim senhor. Mas temos de ter garantias de que reconhecem a Frelimo como único representante do povo de Moçambique em armas, como primeiro passo para a independência. Senão, estamos dispostos a continuar a guerra, pois temos os nossos guerrilheiros no terreno, enquanto as tropas portuguesas já estão a abandoná-lo, pois os soldados não querem combater mais.” E era verdade: os oficiais de carreira ainda aceitariam fazê-lo, cumprindo ordens de Lisboa, mas os oficiais e sargentos milicianos, e os praças, exigiam o fim imediato da guerra e o regresso a Portugal, ameaçando abandonar os quartéis se isso não acontecesse.

V: E o que sucedeu?

OSC: Mário Soares só estava mandatado para obter o cessar-fogo, não podia assumir outra posição. Então eu pedi para intervir. E disse que representava ali também, ou sobretudo, o MFA, que era quem tinha feito o 25 de Abril; e se estivesse do outro lado da mesa teria a mesma posição, dando assim razão às pretensões da Frelimo. Soares pediu uma interrupção, fomos os dois para uma sala ao lado, ele disse-me que ficara numa situação muito difícil, dramática, e quando chegássemos a Lisboa teria de ser eu a informar o Presidente do que se tinha passado… Respondi-lhe que o compreendia, ele cumprira o seu mandato muito bem, como eu diria ao Spínola, mas a posição do MFA era a que eu tinha transmitido e não valia a pena estar a perder tempo.

V: Mas estava lá em representação do Spínola e não tinha mandato específico do MFA, ou tinha?

OSC: Não tinha, mas sabia qual a sua posição e sabia o que se passava no terreno. A reunião terminou assim, tendo o Samora depois mandado a Portugal o Aquino de Bragança, para ver onde estava verdadeiramente o Poder.

V: Chegam a Lisboa…

OSC: Vamos ao Spínola, conto-lhe o que se passou e ele reage muito mal, fica muito maldisposto, chegando a dizer que se as tropas portuguesas não queriam continuar a lutar ele pediria tropas ao Nixon! Mas, poucas semanas depois, embora contrariado, teria de reconhecer que não havia outra solução e já não havia (se é que alguma vez tinha havido) nenhuma hipótese de concretização das teses que ele defendera em Portugal e o Futuro.

V: Mário Soares e Almeida Santos têm afirmado que no processo de descolonização o poder decisório fundamental não foi deles.

OSC: O que é inteiramente verdade.

V: Dando um salto no tempo, passados o 28 de Setembro e o 11 de Março, no “Verão Quente”, a certa altura disse que “qualquer dia tomava o cavalo do poder”.

OSC: Isso foi uma deturpação. Um jornalista brasileiro, o Neiva Moreira, diretor dos Cadernos do Terceiro Mundo, numa entrevista, referiu que «o cavalo do poder» já passara, e continuava a passar, muitas vezes à minha porta, sem que eu o tivesse montado. Admiti que ele tinha razão, mas disse-lhe que não tinha qualquer apetência pelo poder, nem para impor nada a ninguém nunca poderia ser um ditador.

V: Nessa altura, em 1975, no meio de todas as clivagens e «guerras», muitas vezes pareceu ser o fiel da “balança” do poder. Foi-o, de facto?

OSC: Estava metido no centro de um grande turbilhão. Muito ligado aos camaradas que vieram a constituir o Grupo dos Nove, quando saiu o seu documento, até o podia ter assinado, porque era uma crítica dura ao Partido Comunista (PCP), com a qual concordava. Mas, além de ninguém me ter pedido a assinatura, o que me levou depois a não o subscrever foi a forma utilizada pelos meus camaradas para o fazerem, promoverem e difundirem, criando profundas divisões no seio do MFA além do facto de não apontar nenhuma saída para a crise.

V: Os Nove diriam que essas divisões já existiam; e a saída não era respeitar a liberdade, a democracia?

OSC: Hoje, tenho uma perspetiva teórica de como as coisas aconteceram e porque aconteceram. Acho que o embaixador norte-americano, Frank Carlucci, coordenou a acção civil com o Mário Soares, e, precisando de um braço militar, foi buscá-lo ao Conselho de Revolução, a Melo Antunes, um «moderado», e aos outros camaradas.

V: Por um lado, diz que os admira, está próximo deles, e, por outro, admite que o Melo Antunes, o Vasco Lourenço, o Vítor Alves, etc., se deixaram instrumentalizar por Carlucci?

OSC: Não diretamente. As conversações dos Nove fazem-se com Mário Soares, que nessa altura se tornou muito amigo do Carlucci. Há uma conjugação de esforços para afastar o PCP dos postos de poder. É uma teoria minha, não tenho provas.

V: E o Otelo alia-se tácita ou taticamente aos Nove para retirar força ao PCP e afastar o Vasco Gonçalves…

OSC: A questão do Vasco Gonçalves passa muito pela vertente profissional e pela dignidade de um camarada que está a ser enxovalhado sem o merecer, pois é uma óptima pessoa, só que se deixou instrumentalizar pelo PCP. Por isso acho que o Costa Gomes, quando ele foi afastado de primeiro-ministro, não o devia ter nomeado CEMGFA, que já se sabia não ter condições para exercer. [Conta, com pormenor, o que então ocorreu a nível militar.] Nessa altura, estou dividido entre aquilo que deve ser o caminho mais revolucionário, não voltando atrás, e o Grupo do Nove.

Quando, em finais de Agosto de 1975, é constituído o Triunvirato – Costa Gomes (CG), Vasco Gonçalves e eu -, eles exigem a demissão imediata do Charais e do Pezarat, signatários do Documento dos Nove, de comandantes das Regiões Militares Centro e Sul. Eu oponho-me terminantemente e só por isso eles se mantêm em funções.

Dada essa atitude do CG, o grupo ligado aos Nove chama-me a uma reunião, dizem que o Presidente tem de saltar, e dão-me um voto de confiança para o substituir. Eu recuso, digo que apesar das suas flutuações desempenha bem o seu papel, que não me sinto capaz de exercer. Eles insistem e querem que eu vá com o Loureiro dos Santos (LS) ao Forte de São Julião da Barra, para discutir isso com o CG. Eu disse que ia desde que fosse o LS a falar… Chegámos lá, o general recebeu-nos, perguntou-nos o que se passava, e o LS nem lhe conseguiu apresentar a proposta, ele desviou logo a conversa.

V: Três meses depois, o CR substitui-o no comando da RML, os páras saem, dá-se o 25 de Novembro. Tinha conhecimento do que se preparava?

OSC: Sabia, através do Vasco Lourenço, que o Eanes se tinha encarregado de gizar o plano de operações e, a pretexto de qualquer coisa, eles, Nove, estavam pronto para saltar em cima da esquerdalhada e da chamada esquerda militar (ligada ao PCP), para acabar com a vertigem revolucionária. “Aconchegar o travão do comboio da revolução”, como dizia o Charais.

V: Que ligação teve, se teve, ao 25 de Novembro?

OSC: Eu estava fora de qualquer combinação ou conspiração. Não apoiei a saída dos páras, pelo contrário [conta, com pormenor, uma reunião, a 24, no COPCON, com Costa Martins e outros], nem dei ordem para a ocupação das bases da Força Aérea ou para quaisquer outras operações militares. Mais, a minha convicção hoje é que não saiu do COPCON nenhuma ordem. Elementos do COPCON, por sua iniciativa pessoal, tiveram uma reunião com elementos do SDCI (o Serviço de Informação militar) e terá sido deste que as ordens partiram. Ou seja: da esquerda militar, ligada ao PCP, mas que atuava ou podia atuar independentemente dele.

V: Não teve qualquer intervenção no 25 de Novembro, nesse dia apresenta-se em Belém, mas depois é preso.

OSC: Na última reunião do Conselho da Revolução em que participo, no dia 26, ainda o Costa Gomes quer promover-me a general de quatro estrelas e nomear-me vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o que volto a rejeitar, anunciando a minha vontade de regressar à minha simples condição de major.
Fui preso porque, na minha ingenuidade, para serem soltos uns camaradas que estavam injustamente detidos, disse ao Vasco Lourenço e ao Marques Júnior que tinha sido eu a dar a ordem aos páras, o que era falso. Eles continuaram presos e eu juntei-me a eles. O Eanes, já chefe do Estado-Maior do Exército, instaurou-me um processo disciplinar, por «participação nos acontecimentos sediciosos»…

V: Mais tarde, reconheceu que o 25 de Novembro foi a restauração dos valores ou da pureza do 25 de Abril.

OSC: É verdade, de facto foi. A restauração do 25 de Abril democrático, numa concepção burguesa e não revolucionária.

V: Poucos meses depois, em 1976, candidata-se a Presidente da República e é o segundo mais votado, depois de Ramalho Eanes.Porquê essa candidatura e o que representou para si?

OSC: Pensei que era uma oportunidade óptima para expor o que defendia, e correspondi às insistências nesse sentido de muita gente progressista independente, incluindo católicos, gente que nada tinha a ver nem com a extrema esquerda maoísta nem com o PCP. Tive também o apoio do MES, da Base-FUT, do PRP, da FSP e da UDP. Foi uma campanha notável, que me permitiu encarar a hipótese de formar um Movimento de Unidade Popular

V: A candidatura ainda piorou mais as suas relações com o PCP…

OSC: O PCP fez uma pressão enorme sobre mim, para não me candidatar, nunca através de Álvaro Cunhal ou de outros quadros superiores do partido, mas através de pessoas altamente qualificadas. Também figuras como Piteira Santos o tentaram, em nome da «unidade de esquerda».

V: Mantém a candidatura e grande parte do eleitorado do PCP vota em si.

OSC: Mais de metade, de tal maneira que eu tive mais do dobro (17,7%) dos votos do que o candidato comunista, o Octávio Pato (7,58%). Nesse momento, houve muita gente da área intelectual e do operariado que saiu do PCP e houve uma perseguição aos militantes do partido que se soube terem votado em mim.

V: Dando um salto no tempo, chegamos ao famigerado caso das FP-25, que fizeram acções armadas, mataram inocentes, tendo o Otelo sido acusado de ser o seu mentor ou co-autor moral, tendo passado quase cinco anos na cadeia.

OSC: Agora, que tudo acabou, volto a reafirmar e garantir que nunca tive qualquer espécie de responsabilidade em quaisquer acções praticadas pelas FP-25. E, embora sem provas concludentes, continuo convicto de que as acusações contra mim foram uma montagem de pessoas ligadas ao PCP, a que nessa altura pertenceriam cerca de 70% dos quadros do Ministério Público e da Polícia Judiciária, segundo uma fonte seguríssima.

V: Desculpe, mas parece-me difícil acreditar nesses números e achar que isso faz sentido… Qual era o interesse do PCP em o incriminar, quando já não tinha poder nem força política?

OSC: Tinha interesse, porque nesse ano de 1984 eu já anunciara que iria ser candidato presidencial, pela terceira vez, e que a Força de Unidade Popular (FUP), que em 1980 se tinha constituído como partido, concorreria às eleições legislativas, sendo eu cabeça de lista por Lisboa.
Ora, após o que acontecera em 1976, a direcção do PCP tinha medo de perder de novo base eleitoral.

V: Mas as circunstâncias então eram completamente diferentes. Recordo-lhe que, além do mais, em 1980 voltou a ser candidato presidencial e não passou de 1,5% dos votos.

OSC: E fui, em seis candidatos, o terceiro mais votado. Em 1980, as condições eram completamente diferentes. O importante era impedir a vitória do Soares Carneiro, da direita e da extrema-direita que ele representava. Dessa vez, até eu próprio votei no Ramalho Eanes!

V: Era candidato e não votou em si, votou em Eanes!?

OSC: Sim. Havia então um verdadeiro perigo para a democracia instituída, e por isso votei no Eanes.

V: Voltando às FP-25, o facto é que muitos seu amigos e companheiros políticos estiveram ligados às FP-25 ou não?

OSC: É verdade que tive ligações estreitas com elementos das BRs (Brigadas Revolucionárias), e outros, que mais tarde terão constituído o núcleo duro das FP-25. Havia relações, até familiares, entre elementos da FUP e das BRs, e houve quem saísse do secretariado permanente da FUP para as FP-25. Tudo isso tornou fácil à Judiciária, e aos elementos do PCP nela inseridos, meterem no mesmo cesto FUP, Otelo e FP-25. Mas os atentados foram da exclusiva responsabilidade das FP-25. Eu desconhecia completamente tudo sobre esses atentados. [Otelo fala longamente sobre as várias organizações, como participou nelas e como explica, para lá de possíveis aparências, nunca ter estado envolvido nos atos das FP-25.]

V: E então as famosas agendas que lhe foram apreendidas?

OSC: Nesses cadernos eu tomava notas (eram quase atas) das reuniões do Projecto Global, não provando nada sobre a minha alegada ligação às FP-25.

V: Não acha que se envolveu com gente no mínimo pouco recomendável?

OSC: Sim, hoje reconheço-o. Tive enormes decepções e desilusões. Mas o que fiz, por iniciativa própria, considerei importante fazê-lo. Qualquer projeto tem de ser alimentado e suportado por pessoas, admito que a maior parte das que reuni não eram as melhores, também por falta de capacidade política e gabarito intelectual. Não me arrependo, porém, dos projetos que idealizei.

V: Concorda que foi, pelo menos, ingénuo, ou voltava a fazer o que fez?

OSC: Não voltava. E, de facto, o nosso projeto político, de substituição da democracia representativa burguesa por uma democracia direta popular, nessa altura já não tinha nenhuma viabilidade. Lancei-me numa aventura, numa utopia, que achei possível concretizar e não foi. Perdi. Se eu quisesse ter tido «bom senso», se não fossem as minhas perspetivas revolucionárias (mais emocionais de que racionais), estaria agora a gozar uma excelente reforma de general. Mas isso não é da minha índole.
Afinal, foram acidentes de percurso que não me afetam minimamente.

V: Então não afetaram? Não puseram até em causa a sua imagem como um dos ícones do 25 de Abril?

OSC: É possível que sim. Mas, pelo menos, tenho o conforto de saber que a grande massa dos trabalhadores, que não estão agarrados a nenhum partido, mantém por mim um carinho muito grande.
E que lá fora, como ainda agora vi na Galiza e em França, em Auvergne, onde estive a convite do líder socialista regional que derrotou Valéry Giscard d’Estaing, isso também se verifica.

V: Quantos filhos e netos tem? Como é hoje a vida do Otelo cidadão, pai e avô, de que nunca se fala?

OSC: Eu tive três filhos, mas morreu-me uma menina na Guiné, com 7 anos. E tenho três netos. A minha filha mais velha tem 42 anos e é socióloga; trabalhou algum tempo comigo, o que a prejudicou.
O meu filho, com 38, engenheiro, está muito bem colocado profissionalmente, é brilhante em informática, em especial em software. Ainda estudante do Técnico criou uma empresa independente e mais tarde passou a administrador de uma outra, maior, que comprou a sua. Os meus netos têm 14, 5 e 1 ano. Não estou com eles todos os dias, mas estou sempre que posso. Levo uma vida muito calma, porque com a herança que a minha mãe me deixou, em 1981, comprei um terreno, com uma casa antiga, que reconstruí, em Azeitão, onde passo pelo menos quatros dias por semana.

V: Virou agricultor?

OSC: Não, tenho apenas algumas árvores de fruto, que gosto de tratar, dão-me uma satisfação enorme. Se tivesse mais era um problema; assim, não e sempre me vão dando umas laranjas, uns pêssegos, umas maçãs.

V: Também é sócio de uma empresa. Que se passa com ela?

OSC: Em 1991, após uma visita de caráter cultural a Angola, com o Romeu Francês, meu advogado, ele convidou-me, a mim e ao Mouta Liz, para nos fazermos sócios de uma empresa de importação e exportação, a Rotilis, que ainda hoje existe. Mas não desempenho nela quaisquer funções.

V: Como vê a atual situação portuguesa?

OSC: Com muita apreensão. O MFA alcançou os seus grandes objetivos estratégicos democracia, descolonização, e mesmo desenvolvimento, que é notável, mas há muita coisa ainda por fazer. Sobretudo no domínio da qualidade de vida, de maior justiça social e igualdade, aspeto em que continuamos na cauda da Europa.

V: Não lhe puxa o pé, de vez em quando, para voltar a intervir politicamente?

OSC: Hoje sou muito mais prudente nas minhas atitudes do que há 20 anos. Considero que fiz aquilo que podia ter feito; e também fiz aquilo que não devia ter feito. Não pertenço a nenhum movimento ou partido, embora tenha boas relações, por exemplo, com alguns elementos do PS, desde os que estiveram também no processo revolucionário, como o Ferro Rodrigues, até ao Mário Soares, o o Manuel Alegre e o António Reis. Mas sou um homem relativamente isolado.

V: Tem votado? E em quem, se o quiser revelar?

OSC: Voto no Bloco de Esquerda.

V: Onde se situa hoje, ideologicamente?

OSC: Continuo agarrado à perspetiva utópica de um novo tipo de regime político, que permita uma maior participação dos cidadãos: meter um voto numa urna, de quatro em quatro anos, é muito pouco. Os partidos dividem as pessoas, num quase clubismo, criam uma partidocracia e quem não lhes pertence não tem capacidade de intervenção.

V: Se tivesse de se definir, em meia dúzia de palavras, o que diria?

OSC: Sou uma pessoa que, sem formação e estrutura política suficientes, por força do 25 de Abril acabou por ser projetada para importantes funções político-militares, que nunca pediu nem ambicionou. Mas que procurou, sendo um homem de coração e de esquerda, desenvolver um tipo de acção que acabou por contrariar, em alguns aspetos, o projeto inicial do próprio 25 de Abril. Alguém que lutou pelas suas ideias, mas reconhece ter tomado posições que não foram as mais favoráveis para o tipo de regime político e os objetivos por si desejados.

V: Como é que gostaria de ficar para a História e como pensa que ficará?

OSC: Do que já hoje vem sobre mim nas enciclopédias, verifico com desgosto que a minha biografia é sempre rematada de uma forma extremamente negativa, género «envolveu-se com grupos esquerdistas, de luta armada, que o levaram à prisão». Ora, eu gostaria que não ficasse na História essa mentira. Nunca tive nada a ver, sublinho de novo, com nenhuma acção praticada pelas FP-25, nunca tive nada a ver com bombas, assaltos, homicídios. Sei que é difícil, sobretudo após a amnistia, mas mesmo assim vou continuar a tentar repor a verdade. Queria que isto ficasse claro na cabeça das pessoas.

V: Mas, insisto, como gostaria de ficar na História?

OSC: Gostava de ficar na História como um homem que, desde a juventude, lutou por um ideal e conseguiu alcançá-lo. Um homem com grande orgulho de ter sido protagonista de uma acção que libertou o País de 48 anos de fascismo e que continuou depois a lutar pelo que julgou ser o melhor para o seu País e o seu povo.

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