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““No malucarán!””

““No malucarán!””

Gosto de alguns malucos originais. Não gosto é dos malucos que fazem mal à volta. Sobretudo daquele que tem à volta o mundo inteiro.

A costa Oeste americana arde, São Francisco parece uma cena de O Deserto Vermelho… Donald Trump reúne-se na capital Sacramento com autoridades ambientais e diz-lhes: “Isto vai começar a arrefecer, vão ver.” Alguém mais avisado contrapõe dados científicos que desmentem essa mudança, relembra os atuais noticiários de fogo e cinza inusitados, aconselha que sobre o aquecimento global não se enfie a cabeça na areia, mas acaba por ironizar um desejo: “Oxalá a ciência venha a concordar consigo...” É então que Trump diz: “Não acho que a ciência saiba.” Isto é, ele sabe. A ciência é que ainda não sabe.

Eu gosto de malucos, atenção. De alguns. Nelson Rodrigues, por exemplo, pessoa de quem falo muito. Foi cronista inflexível numa única condição, nunca ser chato, e escrevendo sempre na primeira pessoa do singular. Eu (o dele) era o segredo menos guardado de toda a sua crónica — até pode não aparecer, mas o eu estava sempre lá. Cheirava a Nelson Rodrigues na petulância de tentar fazer-me, leitor, seu cúmplice, no consegui-lo, na vírgula e na falta dela, no amor de marceneiro a tratar as palavras como madeira. O brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980) tem várias coletâneas publicadas em Portugal e há uma magnífica biografia que lhe fez Ruy Castro (O Anjo Pornográfico), mas foi numa lenda falada que o cronista mais expôs o seu eu que dizia belas coisas.

Na década de 1960, Nelson popularizou no Brasil os debates televisivos sobre futebol. Ia ver os jogos ao Maracanã e ver era uma maneira de dizer. Ele era pitosga e desdenhava usar óculos e, sobretudo, em matéria de futebol, ele alinhava sempre com o tricolor do Fluminense, para ele uma assumida camisola de forças. Contra factos e foras-de-jogo, ele era Fluminense. Numa noite de mesa-redonda na TV Globo, em 1963, atirou-se com indignação a um penálti contra o seu clube, indecentemente marcado pelo árbitro. Daquela vez, os seus adversários de charla sorriram, porém: tinha aparecido uma nova arma para rever as jogadas... O realizador fez passar o vídeo e viu-se que o árbitro tinha apitado bem. Nelson Rodrigues olhou de frente a câmara que não via, e rematou: “Se o videoteipe diz que é pênalti, pior para o videoteipe. O vídeo é burro!”

A ciência não sabe, o vídeo é burro, há dois malucos, mas só um é glorioso. O outro é perigoso. O eu de Nelson Rodrigues é como os bigodes retorcidos de um meu tio-avô, fizeram-me cócegas naquele Natal antigo, mas passei a vida com saudades. Nelson foi uma singularidade, capaz de não ver o que todos vemos, e sim, ele é que estava errado. Mas não deixou de haver penálti porque ele o negou e, apesar de ele ser o cronista que melhor escreveu em século e meio de crónicas na língua portuguesa, nunca se decretou que o Fluminense se safava daquele penálti. Portanto, e até mais: além de ser uma bênção termos tido as crónicas de Nelson Rodrigues, que bom foi ele ter tido maluquices como a do vídeo.

Que bom foi Sinatra nunca usar sapatos castanhos depois do pôr do Sol. Além de nos ter livrado do
nazismo, que bom foi Churchill ter recebido nu e na banheira o general Eisenhower. O pintor Ingres foi soberbo pintor — os seus nus femininos são deslumbrantes (O Banho Turco…) — e também tocava violino. Na língua francesa há uma expressão, “violon d’Ingres”, que define a paixão de um artista por outra arte de que ele gostava também, e às vezes até preferia que fosse essa a fazê-lo lembrado pela eternidade fora. Que bom ter acontecido a Ingres essa doidice frustrada porque em 1924, mais de um século depois de ele ter pintado A Grande Odalisca, o surrealista Man Ray fotografou uma mulher de costas, sem pernas nem braços, nua com curvas de um violino. A nanquim gravou-lhe na cintura as aberturas acústicas de um violino e chamou-lhe Violon d’Ingres — um dos ícones da arte moderna. 

Eu gosto desses malucos originais que nos fazem bem. Mentirosos como Nelson Rodrigues, ridículos como o meu tio-avô, antigos pobres de Hoboken armados em ditadores da moda em Palm Springs como Sinatra, bêbados como Churchill, e, como Ingres, dos que do pouco que fizeram com o seu violino inspiraram outros à grandeza… A maluquice deles é a cereja cujo vermelho-vivo, se aponta uma bizarria, fraqueza, mania, acaba por confirmar que o bolo em que ela culmina está cheio de talento. Não gosto é de um outro tipo de malucos. Os maus imprestáveis que fazem mal à volta. Sobretudo daquele que tem à volta o mundo inteiro. Ando há quatro anos a cronicar sobre Trump, homem mau. Sobre o assunto raramente escrevi sobre política, deixei-me levar pela minha avó Madalena. Ela morreu em tempos ainda livres de aparições televisivas da besta, mas sei o que ela diria quando Trump, num comício, apontou para um jornalista adversário sentado numa cadeira de rodas e lhe imitou os gestos desengonçados. Ou quando gozou com uma mãe cujo filho, soldado, morrera no Iraque. Ou quando insultou de cobarde — ele que pagou a um médico para lhe arranjar um certificado falso para o livrar da guerra do Vietname — o senador McCain, um herói e ferido de guerra.

PÚBLICO - Foto Nelson Rodrigues DR

A minha avó, de Braga, diria: “Este homem é um estropício.” Ao longo destes quatro anos tenho ficado nesse registo. Mais político, Francisco Mendes da Silva, ex-deputado do CDS, de direita e moderno, com opinião em jornais, televisão e Twitter, conservador com a exata noção do que pode ser o próximo futuro, escreveu recentemente: “Nos Estados Unidos, a urgência é substituir o atual Presidente por um Homo sapiens. Um qualquer. Depois logo se vê.”

Esta semana, no The New York Times, Paul Krugman lembrou as consequências do revelado no livro de Bob Woodward, Rage, agora lançado. Em fevereiro (em fevereiro!), Trump disse (e Bob Woodward gravou) que sabia quanto a covid-19 era mortal, pandémica e contaminava pelo ar. Porém, publicamente, em fevereiro, março, abril, maio, junho, julho…, Trump subvalorizava a doença (simples “gripe”) e fez propaganda contra o uso da máscara. Trump estava errado e sabia. Mas, o que mais é, o seu erro contaminou o mundo onde ele mandava e influenciava. Escreveu Krugman: o governador republicano do Arizona, Doug Ducy, impediu que os mayors do seu estado obrigassem ao uso público da máscara. Em julho, houve semanas no Arizona (população, 7 milhões) que tiveram o mesmo número de mortes diárias que toda a União Europeia (população, 446 milhões).

Há anos, num elétrico lisboeta, não deixei um maluco (só pode, era um tipo de terra de emigrantes a dizer “vai pra tua terra” a duas imigrantes) insultar à vontade duas varinas cabo-verdianas. Mandei bocas contra bocas. Mas não fiz o suficiente e durante dias frequentei o mesmo elétrico, à mesma hora, para dar melhores argumentos ao maluco — não o encontrei e ainda hoje me arrependo não ter sido claro da primeira vez. Há dias, doentes à Trump (Médicos Pela Verdade) foram internados em automedicação no Rossio. Gritaram contra a máscara e sem resposta. Ora os tempos são de guerra cívica: “No malucarán!”, como em 36, em Espanha. Oxalá corra melhor.

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