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Morreu Ruth Bader Ginsburg, juíza do Supremo Tribunal dos EUA e defensora da igualdade entre homens e mulheres

Morreu Ruth Bader Ginsburg, juíza do Supremo Tribunal dos EUA e defensora da igualdade entre homens e mulheres

Magistrada tinha 87 anos e sofria de cancro do pâncreas. Os tributos foram unânimes mas a sua substituição, a mês e meio de eleições presidenciais, anuncia-se controversa

Morreu aos 87 anos, sexta-feira à noite, na sua casa em Washington, a juíza Ruth Bader Ginsburg, membro do Supremo Tribunal dos Estados Unidos desde 1993. Protagonista da luta pela igualdade de direitos entre os sexos, a magistrada anunciara há meses uma recaída de um tumor no pâncreas (o quinto cancro de que padeceu). Nunca deixou de trabalhar.

Fora nomeada pelo Presidente Bill Clinton e era considerada parte da ala progressista do Supremo. “Estar ativa é muito melhor do que ficar deitada a ter pena de mim própria”, afirmou no ano passado, para explicar por que razão se mantinha em funções. “A nossa nação perdeu uma jurista de gabarito histórico”, lamentou o presidente do Supremo, John Roberts. Descreve Ginsburg como “defensora incansável e decidida da justiça”.

O seu desaparecimento a escassas sete semanas das presidenciais de 3 de novembro está a gerar controvérsia sobre a sua substituição. Embora o líder do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell, tenha garantido que será o Presidente Donald Trump a nomear o sucessor de Ginsburg, o Partido Democrata defende que se aguarde pelo resultado das eleições.

Quando, em 2016, o juiz conservador Antonin Scalia morreu de repente, os republicanos (maioritários no Senado) não permitiram, pela mão do mesmíssimo McConnell, que Barack Obama o substituísse, por estar no último ano do seu segundo e derradeiro mandato. Acabou por ser Trump a escolher um magistrado politicamente afim, em 2017.

Reagindo à morte de Ginsburg, o Presidente afirmou: “Teve uma vida fantástica. Que mais se pode dizer? Foi uma mulher fantástica, concordasse-se ou não com ela, foi uma mulher fantástica que teve uma vida fantástica”. O seu adversário Joe Biden homenageou uma “gigante na profissão jurídica”, para depois defender que “os eleitores devem escolher o Presidente e o Presidente deve escolher um juiz para pôr à consideração do Senado”, recordando o episódio de 2016.

Obama recordou que a própria Ginsburg afirmou, já doente, desejar que fosse o Presidente resultante das eleições a escolher o seu substituto. “O meu desejo mais ardente é não ser substituída antes de o novo Presidente tomar posse”, disse a juíza a uma neta. Obama gabou-lhe a coragem de ter resistido até ao fim sem abandonar funções e afirmou: “Ajudou-nos a ver que a discriminação com base no sexo não tem que ver com um ideal abstrato de igualdade; não prejudica apenas as mulheres; tem consequências reais para todos nós. Tem que ver com o que somos e com o que podemos ser”. Ainda na Casa Branca confessara ter “um fraquinho” pela juíza.

Durante a presidência de Obama chegou a haver, nos meios jurídicos progressistas, quem sugerisse que Ginsburg se reformasse para o Presidente poder nomear alguém mais jovem e igualmente progressista (o cargo de juiz do Supremo é vitalício). Ginsburg nem quis ouvir falar disso.

Filha de imigrantes

Oriunda do bairro nova-iorquino de Brooklyn, Joan Ruth Bader era filha de comerciantes imigrados. O pai era um judeu ucraniano, a mãe nascera nos Estados Unidos de pais judeus austríacos. Na escola ficou conhecida pelo segundo nome, porque já havia mais Joans na turma. O respeito que granjeou ao longo das décadas, inversamente proporcional à sua figura diminuta — media metro e meio, o que não a impedia de cuidar da forma física no ginásio —, valeu-lhe a alcunha “The Notorious R.B.G.”, inspirada no nome do rapper “The Notorious B.I.G.”.

A mãe de Ruth, Celia, não tivera possibilidades de tirar um curso superior (os pais só tinham pago estudos ao irmão), e empenhou-se na educação daquela que era a sua única filha viva (perdera a mais velha, ainda bebé). “Ensinou-me a ser alguém que se aferra às suas convicções e ao respeito por si mesma, alguém que é boa professora, mas não ralha zangada. As recriminações não servem para nada”, recordaria mais tarde Ginsburg.

Esta formou-se em Direito nas Universidades de Cornell, Harvard e Columbia. Era uma das poucas mulheres do seu curso e teve de ouvir o reitor reclamar por ocuparem vagas que podiam ter pertencido a homens. Celia já não assistiu a isso, pois morrera de cancro de útero durante a adolescência de Ruth. “Rezo para conseguir ser tudo o que ela teria sido caso tivesse vivido numa era em que as mulheres pudesse aspirar e alcançar e em que as filhas fossem tão acarinhadas como os filhos”, disse Ginsburg sobre a mãe, há 27 anos, quando Clinton anunciou tê-la escolhido para o Supremo.

Casou ainda estudante universitária com o seu colega Martin Ginsburg, com quem ficou até à morte deste, em 2010, e foi mãe entre o bacharelato e a licenciatura. Viveram no estado de Oklahoma devido ao serviço militar de Martin, tendo Ruth visto uma oferta de emprego esfumar-se durante a sua segunda gravidez (em todo o caso, por ser mulher, o que lhe ofereciam era bem inferior às suas qualificações). De novo o cancro ensombrou a vida da juíza: Martin teve um tumor testicular no terceiro ano em Harvard.

Contra a discriminação de mulheres... e homens

Ginsburg foi assistente estagiária de um juiz, antes de voltar a Columbia para estudar Direito Comparado, o que lhe deu ocasião de visitar a Suécia, onde o feminismo grassava já nos anos 50, e aprender sueco. No país escandinavo era normal uma mulher combinar vida familiar e profissional. De volta à América, a jovem jurista ensinou na Universidade Rutgers, foi cofundadora da revista “Women’s Rights Law Repoter” em 1970 e trabalhou como advogada voluntária para a União Americana pelas Liberdades Cívicas, cujos órgãos dirigentes integrou.

Ali, defendeu, entre outras, mulheres que tinham perdido o emprego ao engravidar, tendo litigado essa e outras causas até ao Supremo, onde venceu cinco de seis processos. Também aceitou casos em que os queixosos eram homens (exemplos: defendeu um viúvo que os serviços sociais consideravam incapaz de cuidar dos filhos; questionou que no Oklahoma as raparigas pudessem comprar cerveja aos 18 anos enquanto os rapazes só podiam fazê-lo aos 21; protestou por os maridos das mulheres militares não gozarem dos mesmos benefícios que as mulheres de militares homens), precisamente para frisar que o sexo não podia ser base para discriminar.

“As diferenças inerentes aos homens e mulheres, conforme as apreciamos, continuam a ser motivo para celebrar, mas não para denegrir os membros de qualquer dos sexos com base em limitações artificiais às oportunidades de um indivíduo”, escreveu anos mais tarde, já no Supremo, sobre um caso contra a exclusão de mulheres de uma escola militar pública, em que foi bem-sucedida.

Designada pelo Presidente James Carter, em 1980, para o Tribunal da Relação do distrito de Columbia, assumiu posições por vezes moderadas e fez-se amiga do arquiconservador Antonin Scalia, mais tarde seu colega no Supremo. Era mostra da sua capacidade de diálogo e da convicção de que o ramo judicial tinha de interagir com os outros ramos do poder (executivo e legislativo) em vez de se lhes impor. E também da fineza do pensamento de uma mulher que, por exemplo, tendo sido sempre defensora da legalização da interrupção voluntária da gravidez, não se coibiu de criticar a histórica decisão “Roe vs. Wade”, que lhe abriu portas, por discordar do processo, embora aceitando o conteúdo.

“Uma mulherzinha ali ao lado”

Quando, em 1993, Clinton elevou Ginsburg ao Supremo, essa tendência para procurar consensos pesou. Na altura só havia outra mulher entre os demais oito juízes: Sandra Day O’Connor, de quem a recém-nomeada se aproximou. Ambas eram juristas a quem na juventude tinham sido negados cargos importantes por serem mulheres.

Quando O’Connor se jubilou, em 2006, Ginsburg foi a única mulher no Supremo durante quatro anos, que descreveu como “os piores”, explicando: “A imagem para o público que entrava no tribunal era de oito homens de certa estatura, e depois uma mulherzinha ali ao lado”.

Em 2009 e 2010, o Presidente Barack Obama nomeou, respetivamente, Sonia Sotomayor e Elena Kagan para o Supremo. Nos últimos anos, foi com ambas e o juiz Stephen Breyer que Ginsburg formou a minoria progressista daquele tribunal cada vez mais polarizado, esforçando-se por conquistar o apoio do magistrado Anthony Kennedy, que ia oscilando.

Os pareceres que redigia eram admirados, quer estivesse em maioria ou votasse vencida (prerrogativa que ganhou por antiguidade no tribunal), pela clareza da redação, evitando o jargão jurídico. A própria explicava essa capacidade por ter sido aluna do escritor Vladimir Nabokov em Cornell. Ganhou fama por usar colares diferentes no Supremo consoante concordasse ou discordasse da decisão anunciada nesse dia. Isso levou cientistas a nomear uma espécie de louva-a-deus em sua honra: a Ilomantis ginsburgae, que tem uma faixa no pescoço semelhante a um colar.

Entre as causas de Ginsburg estiveram a defesa dos direitos parentais de quem não tinha meios para sustentar os filhos (já que a Constituição não permitia discriminação positiva dos mais pobres, a magistrada foi pela via da proteção das relações familiares); a eliminação de diferenças entre imigrantes homens e mulheres não-casados na transmissão de direitos de cidadania americana aos filhos; a defesa do casamento entre pessoas do mesmo sexo; o alargamento do direito ao voto; os direitos dos imigrantes; os cuidados de saúde universais. Imparável, se ia ao cinema levava uma lanterna para ir estudando processos enquanto acompanhava o filme.

Ídolo dos progressistas

Em anos recentes, sobretudo desde que Donald Trump chegou à Casa Branca, Ruth Bader Ginsburg (que lhe chamara “fingidor”, num gesto de que se arrependeu por não se coadunar com a neutralidade exigida ao Supremo) tornou-se ídolo da esquerda americana. Apoiou o movimento #MeToo contra os abusos sexuais.

O seu rosto surgiu em T-shirts, canecas e tatuagens, jovens disfarçavam-se da juíza no Halloween, publicaram-se biografias e em 2018 estrearam dois filmes, um documentário e um de ficção, sobre a sua figura, que também foi copiosamente retratada no programa “Saturday Night Live”. O cabelo escuro puxado para trás e os fatos Armani valeram-lhe a inclusão, várias vezes, em listas de mulheres mais elegantes do ano.

Discreta em ocasiões sociais, escreveu vários livros de memórias e tinha na ópera uma paixão. Adorou que Harvard lhe tivesse dado um título honorário em simultâneo com Plácido Domingo e chegou a ser figurante silenciosa em várias produções operáticas. A sua amizade com Scalia, apesar de terem opiniões políticas diametralmente opostas, inspirou a ópera cómica “Scalia/Ginsburg”, do compositor Derrick Wang.

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