www.sabado.ptCarlos Neto - 23 mai. 18:30

Não proíbam as crianças de trepar as árvores

Não proíbam as crianças de trepar as árvores

Opinião de Carlos Neto

Passaram já alguns dias em que recebi uma mensagem de uma mãe com um filho no final do 1º ciclo de escolaridade numa escola na periferia de Lisboa e a propósito da reversão da decisão da direção da escola em passar a proibir os seus alunos de poderem trepar as árvores existentes na escola. Esta medida passará a constar no regulamento interno da instituição, podendo ser atribuída falta disciplinar aos alunos que possam não respeitar esta regra.

Na verdade, este não é o primeiro caso existente em muitas escolas do nosso sistema educativo em Portugal, principalmente nos primeiros níveis de escolaridade. Cortam-se as árvores, elimina-se os espaços verdes, elementos ou equipamentos naturais e restringe-se a brincadeira livre nos espaços exteriores das escolas. Em sua substituição são criados espaços em cimento, asséticos ou plastificados, na convicção que se eliminam todos os fatores de risco das crianças nestes tempos de lazer que constituem um direito fundamental na infância. Impera o medo sistemático e o controlo patológico dos adultos, em ter crianças na escola segundo os seus critérios de segurança e de preferência, sem se sujarem (crianças limpinhas) ou poderem fazer brincadeiras arriscadas, próprias das suas culturas de infância.

Estes constrangimentos impostos e não negociados com os alunos, sobre a necessidade de brincar e ser ativo na escola através da exploração e aprendizagens não formais, está a danificar as culturas motoras e sociais das crianças, com muitas consequências futuras para a sua saúde física e mental. As árvores fazem parte da existência humana e contribuem para o equilíbrio do ecossistema que é muito importante nos nossos dias. Subir a uma árvore é uma experiência única e de uma riqueza enorme do ponto de vista evolutivo. As crianças adoram elevar-se aos céus, permanecer nas alturas como se fosse um altar, em que se adquire uma capacidade de controlar visualmente a paisagem ao nosso redor. Do alto vemos melhor, obtemos mais segurança de predadores, apesar das transformações e limitações do corpo humano em ter perdido capacidades de agilidade motora em relação a outos mamíferos com melhores capacidades de preensão. Quando trepamos as árvores obtemos sensações novas e reconhecemos as nossas memórias ancestrais que atribuem um sentido de identidade e controlo do nosso corpo. Todas as crianças adoram escalar superfícies verticais (bancos, escadas, muros, árvores, cordas, etc.) ou mesmo superfícies inclinadas (montes, escorregas, pirâmides, pontes, etc.).

O desenvolvimento motor e percetivo nas primeiras idades é fascinante e motivo de grandes conquistas em sequências de movimentos, baseado em dinâmicas evolutivas de natureza filogenética e ontogenética. Muitos desses movimentos têm uma origem na experiência de milhões de anos que permanecem no nosso inconsciente e manifestam-se inicialmente (nascimento humano) sob a forma de reflexos.

Toda a arquitetura da nossa motricidade tem origem numa grande parte dos casos em movimentos reflexos primitivos e que se tornam mais tarde em movimentos voluntários. Quando nascemos, já dispomos destes mecanismos reflexos (preensão, andar, endireitamento do tronco, etc.) que são a base da conquista de movimentos voluntários de natureza postural, locomotora e manipulativa e segundo um período de mudanças relativamente rápido e ao mesmo tempo longo no processo de maturação biológica, cognitiva e social. Nesta multiplicidade de aquisições motoras reflexas, rudimentares e fundamentais, deve destacar-se o reflexo de trepar à nascença e o papel decisivo nas ações de escalar diversos tipos de superfícies, ainda que por razões evolutivas, tenhamos perdido a ação de precisão e oposição do polegar dos nossos pés (evoluiu para o transporte bípede do corpo no espaço). No entanto não perdemos completamente a capacidade do movimento de trepar muito pela cooperação da ação das nossas mãos que mantêm a capacidade de um polegar destacado dos restantes dedos que nos permite as ações de preensão e agarrar objetos ou superfícies escaláveis.

As ações de coordenação motora global e segmentar, permitem uma evolução motora ao longo da idade, em que o trepar se constitui como uma forma essencial de ação que permite a nossa emancipação e autonomia como corpos adaptados a situações da vida quotidiana e também no grande aperfeiçoamento de atividades altamente especializadas (circenses, desportivas, artísticas, etc.). Todas as crianças aprendem a trepar ao longo do seu desenvolvimento motor. Trepar é um movimento fundamental que permite busca de prazer, superação de si mesmo, confronto com o risco e limites do corpo e adquirir segurança. As crianças que sobem as árvores ficarão mais preparadas para terem mais segurança e menos propensas para acidentes. Os pais, instituições educativas e comunitárias, deveriam ter consciência que as crianças a partir dos 4/5 anos já apresentam uma excelente capacidade de dominar e controlar o corpo em situações motoras que implicam alturas e formas de escalar superfícies verticais. Quando retiramos ou proibimos a possibilidade de vivências desses contextos que implicam movimentos de trepar, estamos a contribuir para um empobrecimento do seu reportório motor e uma vulnerabilidade corporal que terá várias consequências no processo de desenvolvimento ao longo da vida. Estudos científicos apresentam muitas vantagens de as crianças poderem trepar as árvores de diversos tipos e configurações: permite que as crianças desenvolvam as suas capacidades físicas e coordenativas e o poder de concentração, autoconfiança e autoestima; é uma excelente forma de exercitação de coordenação motora global e segmentar; permite conexões únicas entre perícias corporais e decisões mentais e percetivas; exercita a aquisição de conexões neurais complexas; ajuda a resolver problemas em situações inabituais e aquisição de uma experiência sensorial única; adquirir a apropriação de um conhecimento e domínio do seu próprio corpo e obter confiança nas opções imprevistas que lhes são colocadas a cada momento; permite o desenvolvimento da perceção espacial e visual; incita a desencadear energias de superação da vontade própria, reforçando as suas faculdades mentais; ajuda a uma maior conexão com a natureza desenvolvendo maior capacidade de escuta e contemplação; fortalece a sua capacidade de resiliência e memória das experiências de risco e capacidade de perceção do perigo; melhora a memória de sequências motoras e emocionais; permite testar limites do seu próprio corpo em ação através de melhor regulação emocional; solicita as impressões inconscientes da nossa ancestralidade e enriquece narrativas lúdicas simbólicas poderosas de imaginação e fantasia.

As crianças estão a ficar cada vez mais sem liberdade de se mexerem e brincarem de forma livre em casa, na escola e na comunidade. Experiências de confronto com o risco físico em contato com a natureza são cada vez mais restritas, devido ao excessivo medo e controlo parental e escolar. As árvores, são parceiros favoritos das crianças e deveriam ser também de todos os cidadãos. As árvores podem ser escaláveis e fazem parte da história do planeta e da humanidade. Retirar a possibilidade de uma criança trepar uma árvore constitui "uma espécie de crime" aos direitos das crianças poderem brincar de forma livre e com um significado poderoso do ponto de vista antropológico. Cuidar das árvores tem a mesma importância do que cuidar do nosso corpo. As crianças são amigas das árvores porque apresentam um profundo significado nas suas existências. O medo e a superproteção, impedem as crianças de aprenderem a lidar com as suas emoções, de tomarem decisões e serem capazes de resolver problemas complexos. O seu desenvolvimento fica comprometido em muitos casos por não terem confiança em si mesmos, acreditar nas suas capacidades, gerir as suas emoções e conquistar autonomia. Cair, magoar-se, ficar esfolado no corpo, errar, etc. é a melhor oportunidade para poder aprender. Subir as árvores é um comportamento sublime. As árvores sempre fizeram e continuam a fazer parte da nossa existência. Não pode e não deve ser proibido impedir as crianças de desfrutar essa maravilhosa descoberta. Esta conexão sempre existiu ao longo da humanidade e deverá continuar na preservação ambiental e do planeta. Mais crónicas do autor 07:00 Não proíbam as crianças de trepar as árvores

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