sol.sapo.ptFabio Sousa - 26 abr. 10:00

Abril não tem donos nem se celebra assim

Abril não tem donos nem se celebra assim

Enquanto Eanes continua a recusar o bastão de marechal, Spínola e Rosa Coutinho são agraciados às escondidas pelo Presidente da República. E assim se comemoram os 50 anos do 25 de Abril. Da liberdade, da unidade, da esperança. De um país sempre adiado.

Pode haver maior negação da liberdade conquistada há 50 anos do que o Presidente da República condecorar às escondidas os membros da Junta de Salvação Nacional que tomou o poder no fim daquele dia em que o Estado Novo caiu às mãos do Movimento das Forças Armadas?
Não, não pode.

Por mais explicações que possam avançar-se – como a Presidência da República chegou a fazê-lo –, é uma contradição insanável conceder-se em segredo as mais altas condecorações da Ordem da Liberdade aos marechais António de Spínola e Francisco da Costa Gomes. Ou as insígnias de Grande Oficial da Ordem da Liberdade aos restantes membros da Junta de Salvação Nacional.

Se as condecorações – às três propostas do presidente da Associação 25 de Abril, Vasco Lourenço, um dos capitães do MFA (Spínola, Costa Gomes e Rosa Coutinho), Marcelo juntou as dos restantes membros da Junta para tentar amenizar a polémica (Silvério Marques, Galvão de Melo e Diogo Neto) – suscitaram forte reação à esquerda (sobretudo, a do mentor do 11 de Março) e à direita (obviamente, a do ‘Almirante Vermelho’), tentar passar uma esponja sobre o papel de cada um dos protagonistas na História de Portugal não é a melhor forma de promover a unidade nacional, a liberdade e o pluralismo democrático.

Pior ainda se atendermos ao momento ou era política que atravessamos, não só em termos nacionais como internacionais.

Nos últimos tempos, o mundo Ocidental tem assistido a uma progressiva radicalização política na sociedade e nas suas instituições, com uma crescente representatividade dos movimentos da extrema-esquerda, primeiro, e, depois, da extrema-direita.

Portugal não é exceção.

E essa radicalização política e ideológica cada vez mais profunda é acompanhada pela ameaça de uma guerra à escala global (que se julgava impensável no século XXI) e pelo incremento dos fundamentalismos religiosos (incontroláveis).

O que torna o caldo em que estamos metidos ainda mais explosivo e perigoso.

Neste quadro, as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril desenhadas por Pedro Adão e Silva – primeiro como comissário, depois como ministro da tutela – não podiam ser mais infelizes.

Por junto, é o mesmo de sempre com um orçamento muito mais elevado – ou seja, permitindo distribuir mais pelos mesmos.

Exposições, mostras, documentários, espetáculos teatrais e cinematográficos, concertos, mesas redondas ou conferências…

Enfim, mais do mesmo, com cada vez mais cheiro a bafio e a naftalina.

Cinco décadas depois, são coisas de velhos para velhos, sem novidade, sem criatividade, sem originalidade, sem inovação.

E_com muito mais radicalismo e divisionismo do que com pluralismo e promoção da reconciliação e da unidade nacionais e intergeracionais.

Porque as comemorações do 25 de Abril tornaram-se uma apropriação da esquerda mais radical, com uma intolerância ideológica que faz recordar, sim, os tempos mais extremados do Processo Revolucionário em Curso – ou simplesmente PREC.

Não faz sentido ressuscitar fantasmas do passado nem alimentar ações idiotas de quem não tem coragem para dar a cara e assumir com assinatura própria e original nas suas iniciativas provocatórias e atentatórias da urbanidade.

A publicidade aproveita apenas aos autores que se pavoneiam nas redes sociais clamando contra o ódio e o revanchismo com mensagens de ódio e revanchistas. Patetas encartados escondidos atrás de filtros que lhes tapam os rostos e lhes distorcem as vozes.

Abril não se comemora assim.

Abril é a liberdade que termina onde começa a do outro, com pluralismo democrático, respeito mútuo e direito à diferença.

Não, camaradas, não somos todos iguais, nem temos de pensar todos da mesma maneira, nem andar todos de cravo vermelho ao peito a descer a Avenida, ou a cantar Zeca e Sérgio e Tordo e Janita.

E não há mal algum na diferença, antes pelo contrário.

De outro modo, não há liberdade.

Também por isso, condecorar às escondidas os membros da Junta de Salvação Nacional não dignifica em nada as instituições democráticas, como se a ausência de publicidade apagasse as razões da contestação às condecorações e contribuísse para a desejada reconciliação nacional.

O Presidente Marcelo devia, sim, empenhar-se na tentativa de convencer Ramalho Eanes a aceitar o bastão do marechalato.

Eanes foi decisivo no 25 de Novembro e no triunfo da liberdade e da democracia sobre as tentativas de sovietização do regime. E foi eleito e reeleito Presidente, em 1976 e 1980, e não ‘nomeado’ como os dois únicos marechais da história da democracia portuguesa.

Far-se-ia justiça e escusávamos de andar a perder tempo em mais comemorações iguais a tantas outras, que não contribuem para o enriquecimento do país e da sociedade.

E, 50 anos passados sobre o 25 de Abril, alguma coisa ficaria para a História destas comemorações em que o Estado tanto investiu.

Se não, resta pouco mais que nada, entre atos menores e manifestações de cobardia dos que se julgam donos de Abril num país assim sempre adiado.

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