eco.sapo.ptRicardo Nunes - 24 abr. 11:22

Quando o mercado nos mostra o caminho

Quando o mercado nos mostra o caminho

Cada vez que existe uma tendência consistente de preços, é também o mercado que nos está a dar sinais sobre que política energética devemos seguir.

Durante a crise energética, nomeadamente no primeiro trimestre de 2022, os preços no mercado diário de eletricidade na Europa alcançaram patamares impressionantes (o recorde em Portugal foi dia 8 de março com 572€/MWh), provocando um ruidoso debate entre opinion makers, desde os mais institucionais aos mais independentes, em toda a Europa. Muitas pessoas clamavam por uma revisão profunda do modelo marginalista de mercado.

Nos últimos dois meses, os preços têm apresentado uma notável baixa nos diversos mercados spot, atingindo mesmo valores negativos em vários períodos horários. Esta recente realidade reacendeu discussões sobre a necessidade urgente de reformular o modelo de mercado marginalista, já que segundo algumas opiniões, não é adequado para lidar com a crescente penetração das energias renováveis, nem para abordar de forma eficaz alguns fundamentais de mercado como o preço do gás natural, o nível de preços das emissões de CO2 ou até o ritmo desejado para a transição energética na Europa.

Resumindo, para alguns agentes de mercado, quando o preço é demasiado alto, “reforme-se o mercado”, quando o preço é demasiado baixo, também.

Um mercado, independentemente da sua natureza, deve possuir três características essenciais: um histórico que assegure consistência, compreensão do seu funcionamento por todos os intervenientes e conformidade com as melhores práticas internacionais estabelecidas. O modelo marginalista, especialmente no contexto ibérico, satisfaz plenamente esses critérios.

No modelo marginalista, os produtores de eletricidade fazem ofertas com base no custo marginal de produção, integrando custos como: combustível, emissões, operação e manutenção, e impostos. No seguimento, essas ofertas são ordenadas de forma crescente. Por contraste, os compradores de energia organizam as suas ofertas com base no preço de compra, em ordem decrescente. O preço da energia para todos os agentes de mercado será então determinado no ponto de interceção entre a oferta e a procura, sendo o custo marginal de produção do último produtor que satisfaz a procura no período de licitação.

Embora defender este modelo de formação de preços não seja popular, o modelo marginalista continua a ser a forma mais eficiente de definição de preços, pois o preço tende a aproximar-se do custo de produção de eletricidade a cada hora (custo marginal). Talvez seja essa a razão pela qual é o modelo predominante na maioria dos mercados de commodities em todo o mundo, incluindo em produtos como petróleo, carvão, alumínio, cobre, gás natural entre muitos outros.

Os mercados de energia de curto prazo, sejam eles de eletricidade, gás natural, petróleo, emissões de CO2 ou outras commodities, são caracterizados por uma elevada volatilidade, principalmente devido à sua dependência de fatores intrinsecamente instáveis. Além das consideráveis oscilações no consumo e na produção, impulsionadas pela crescente incorporação de fontes renováveis, que por sua vez são fortemente influenciadas por condições climáticas imprevisíveis e complexas.

Como em qualquer mercado, cada participante ambiciona ter um resultado que vá de encontro aos seus interesses individuais. Os consumidores domésticos almejam um mercado onde os preços sejam tão baixos quanto possível, visando minimizar os seus custos energéticos e garantindo assim mais disponibilidade financeira para outras opções nas suas vidas. Os consumidores industriais e empresariais anseiam por preços mais acessíveis, a fim de reforçar a sua competitividade e reduzir o peso dos custos energéticos nos seus modelos de negócio. Os produtores de energia renovável dependem de preços relativamente elevados para justificar os seus investimentos. Enquanto isso, os governos procuram um equilíbrio difícil: preços suficientemente baixos para manter a popularidade entre os eleitores, mas moderadamente altos para não limitar a popular transição energética. Naturalmente que preços excessivamente baixos obrigarão os governos a subsidiar os produtores, por meio de Feed-In Tariffs (FITs), Contratos por Diferença (CFDs) ou outros mecanismos similares, a fim de manterem o ritmo desejado na transição energética.

No entanto, os mercados não são concebidos para servir interesses individuais específicos, pelo contrário, terá de ser num ambiente competitivo onde diferentes objetivos se confrontam, que se tende a encontrar um equilíbrio que sirva como referência para os desafios do presente e principalmente do futuro.

Durante os períodos de preços recorde em mercados de curto e de longo prazo, ficou evidente que a exagerada dependência energética da Europa face à Rússia era insustentável, que a cadeia de valor do setor estava a ser quebrada em vários dos seus pontos fundamentais. Os altos preços destacaram a urgência de agir rapidamente para reduzir a dependência e procurar novos fornecedores, fortalecer a capacidade de armazenamento de gás natural, além de nos obrigar a ponderar se a transição energética europeia não estaria a ser implementada a um ritmo excessivamente acelerado face ao desenvolvimento tecnológico das soluções adotadas.

Nos últimos meses, os preços baixos e até mesmo negativos, especialmente durante os períodos de maior produção renovável, demonstraram a necessidade de diversificação do mix energético, enfatizando a importância do armazenamento para sustentar a produção fotovoltaica, de impulsionar o desenvolvimento das interconexões para exportar o excedente de energia para o continente europeu, além de obrigar a desenvolver “novo” consumo de energia elétrica. A precisão das informações transmitidas pelos preços de mercado será diretamente proporcional à redução de exceções e artifícios que influenciam o seu funcionamento regular.

Reconhecendo que o mercado spot fornece análises instantâneas e indica constrangimentos de curto prazo (que até podem ser menos conjunturais e mais estruturais se as tendências de preço persistirem no tempo), é no mercado de longo prazo que todos os agentes devem gerir o risco de preço de forma estratégica e responsável.

Dispomos em Portugal (e em Espanha) de todas as ferramentas necessárias para uma gestão de risco eficaz, tanto na compra quanto na venda de energia, por meio de contratos de longo prazo oferecidos nos mercados organizados (como o OMIP e o MIBGás), contratos Over the Counter (OTC) entre empresas (e depois registados em câmaras de compensação como a OMIClear), leilões de produtos a prazo promovidos pelo regulador ou através de acordos bilaterais de compra e venda de energia (PPAs), nos quais os consumidores firmam contratos de longo prazo com centrais de produção renovável.

Embora esses instrumentos sejam amplamente utilizados em outros países europeus há muitos anos, o volume negociado em Portugal e Espanha ainda está muito aquém do desejável. Desde logo, falta-nos uma cultura de compromisso de longo prazo na gestão do risco na energia (e não só, como se vê na preferência inequívoca dos portugueses por empréstimos de habitação indexados à taxa Euribor). Além disso, o setor energético ainda é marcado por uma grande concentração e verticalização em toda a cadeia de valor, característica que desencoraja a participação em mercados de longo prazo.

O desafio reside, não em estar permanentemente a pôr em causa o modelo de mercado quando o preço não coincide com os nossos interesses, muito menos em criar exceções ou imposições regulamentares momentâneas para tentarmos influenciar o seu normal funcionamento, mas sim em promover um ambiente competitivo, consistente e equilibrado que permita ao mercado, tanto de curto como de longo prazo, cumprir a sua função de forma eficaz e confiável.

(Este espaço de opinião é pessoal, não vinculando as entidades com as quais o autor tem relação profissional ou associativa)

Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes e membro do Conselho de Energia da CIP.

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