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O homem que tentou que Pelé trocasse os pés pelas mãos

O homem que tentou que Pelé trocasse os pés pelas mãos

O Tite ensinou Pelé a ter coragem quando este ainda se chamava Gasolina. Foi um goleador implacável.

Era de antes de Pelé mas também de durante Pelé. Tite, quero dizer. Ou de nome completo, se preferirem, Augusto Vieira de Oliveira. No Santos, onde jogou vindo Goytacaz Futebol Clube, uma organização desportiva da cidade de Campos dos Goytacazes, no estado do Rio de Janeiro, e com passagem breve pelo Fluminense, ainda teve a alcunha de Rei do Futebol. Não durou muito, como imaginam. Augusto, o Tite, tinha como passatempo ir ver os jogos da garotada doSantos. Num deles, a final do campeonato paulista juvenil de 1956, o Santos defrontou o Jabaquara, e do lado santista atuou um menininho de 15 anos que levava a alcunha de Gasolina mas se chamava, na verdade, Edson Arantes do Nascimento. Nada de Pelé. Pelé foi a seguir. Nesse tempo era Gasolina e era um pau. O Jabaquara tomou a dianteira do marcador e tinha tudo para ser campeão quando, à beirinha do fim, o árbitro, Ramualdo Arppi Filho assinalou grande penalidade a favor do Santos. Gasolina podia ainda não ser Pelé mas era, de caras, melhor do que os outros todos juntos. Por isso, agarrou na bola e foi com ela debaixo do braço até à marca de penalti. Os adeptos do Jabaquara – conhecidos pelos Leões do Macuco – fizeram um estardalhaço daqueles, mas Ramualdo afirmou que o marcado marcado estava e não voltou com a palavra atrás. O guarda-redes não dava confiança por aí além: era magrinho, quase parecia tísico, com perninhas de codorniz. O nome batia-lhe certo, à medida: Fininho. Mas, finguelinhas ou não, lançou-se com valentia para a bola chutada por Gasolina e defendeu de forma tão segura que nem deu direito a recarga. Aquele que viria a ser Pelé mas ainda não era chorou baixinho, só para ele, caminhando devagar através do relvado, quando um mamífero imponente lhe colocou a mão no ombro e disse: «Calma garoto. Fique tranquilo. Você ainda vai ter mais de mil chances de golo para marcar». Era o Tite. E tinha razão. 

Claro que adivinhar um futuro brilhante para o pequeno Gasolina não exigia dotes de vidente, de bruxo, de pai de santo ou de o diabo que o carregue. O garoto abafava. E o público saltava dos seus lugares como se tivesse molas no rabo de cada vez que ele assinava um lance inimitável. 

Já Tite, o Tite, não teve a vida fácil. Nasceu lá nos Campos dos Goytacazes em Junho de 1930, marcava golos à velocidade que os coelhos esburacam luras, mas no Fluminense o assunto complicou-se. Como jogava sobretudo sobre as pontas, esbarrou com dois daqueles donos exclusivos dos lugares, Telê Santana, na direita, e Quincas, na esquerda. Começou a ver a carreira muito mal parada até que se lhe abriram as portas do tal Santos Futebol Clube que tinha um rapazinho chamado Gasolina e que viria a ser Edson Arantes do Nascimento, ou melhor, como dizia Nelson Rodrigues, por extenso Pelé. Apesar de ser, geralmente, um extremo, o Tite era daqueles Pé-Quentes inolvidáveis e irrepetíveis: marcava golos atrás de golos atrás de golos. Jogou na seleção brasileira o lado do fedelho a quem dava conselho e que, pelo caminho, já era Pelé. E com outros como Del Vecchio, Zito e Mazzola. No dia 17 de outubro de 1974 decidiu que já chegava de jogar com os pés e começou a jogar com as mãos. Tinha uma habilidade inata para fazer tinir o violão. Foi fazendo canções que alegravam os companheiros quando estes estavam fechados nos estágios. Aparecia de surpresa, pegava nas seis cordas, desembrulhava uma marchinha ou um sambinha, bebia o seu copo de cachaça e voltava a dizer a todos o mesmo que dissera a Gasolina antes de este ser Pelé: «Rapaziada, vão lá para o gramado que ainda têm mais de mil golos para marcar!». A sua Canção do Infinito fazia com que os companheiros pedissem bis até ele se cansar e regressar a casa. Ia feliz. Passara um ano no Corinthians mas o Santos foi sempre a sua casa. O médico deu-lhe a notícia definitiva: cancro no pulmão. Fugiu da morte enquanto pôde, num bar de chorinho, em Gohayó, SãoVicente, a primeira vila portuguesa inaugurada na América do Sul. Ainda ensinou Pelé, já Pelé, a tocar violão. Puxa! Como tocava mal o crioulo. Ainda bem que não trocou os pés pelas mãos.

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