rr.sapo.ptOpinião de Carlos Figueira - 24 abr. 07:23

O radicalismo da humildade e da fraternidade universal

O radicalismo da humildade e da fraternidade universal

Tal como o bom samaritano, todos - mas especialmente os detentores de cargos públicos - devemos procurar colocar o bem comum acima de qualquer divergência política, social ou outra.

A atual conjuntura política, com uma composição fragmentada do Parlamento português, relembra-nos, a nível político talvez mais do que nunca, que dependemos uns dos outros e que o caminho para conseguirmos prosperar e nos desenvolvermos passa pelo diálogo, pela escuta e pela capacidade de alcançar compromissos e consensos.

Paradoxalmente, em Portugal (e um pouco por todo o mundo) vivemos num clima de polarização e intolerância, em que somos incapazes de respeitar e dialogar com aquele que pensa diferente; um clima onde não há espaço para a moderação. Com efeito, devemos ser capazes de descobrir e respeitar o valor da diferença e ter a humildade de reconhecer o valor e a dignidade do outro que pensa diferente de mim; precisamos de reconhecer que o todo deve estar acima da parte, que todos somos responsáveis uns pelos outros e que o bem comum deve estar acima de qualquer objetivo ou benefício individual.

Neste sentido, gostaria de propor três possíveis fontes de inspiração (intimamente ligadas entre si): os princípios da Doutrina Social da Igreja, a parábola do Bom Samaritano e uma figura marcante da história – São Francisco de Assis. Estas três fontes de inspiração são úteis, tanto para crentes como não crentes, já que nos podem guiar em questões “de significado, de valor e de empenhamento” (nº 78, Compêndio da Doutrina Social da Igreja).

A Doutrina Social da Igreja assenta no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. É neste princípio que todos os seus outros princípios e conteúdos encontram fundamento. A dignidade é uma condição inalienável de todo o ser humano, que foi criado à imagem e semelhança de Deus. Esta dignidade concretiza-se na procura do bem comum (outro princípio da Doutrina Social da Igreja), enquanto bem de todas as pessoas e da pessoa toda.

É importante lembrar que o bem comum não consiste na simples soma dos bens individuais, pois apresenta uma dimensão social e comunitária. Assim, só é possível alcançá-lo e conservá-lo se caminharmos juntos. Como nos relembra outro dos princípios da Doutrina Social da Igreja, o princípio da solidariedade, todos somos responsáveis por todos, o que implica pensar e agir em termos de comunidade. Todos somos chamados a cultivar relações de respeito e cuidado uns com os outros. Cada um de nós é responsável por procurar o bem comum, mas também o Estado tem essa missão, já que “o bem comum é a razão de ser da autoridade política” (n.º 168, Compêndio da Doutrina Social da Igreja).

Outra fonte de inspiração que gostaria de propor é a Parábola do Bom Samaritano, que nos ajuda a compreender a diferença entre aquele que está perto de mim (do ponto de vista ideológico, social ou geográfico) e aquele que é o meu próximo.

Nesta parábola, um samaritano ajuda um judeu que tinha sido assaltado e deixado quase morto no meio do caminho. Este samaritano encheu-se de compaixão e cuidou daquele que, do ponto de vista social e religioso, seria a pessoa mais afastada de si. Neste sentido, esta parábola apresenta-se como uma inspiração fundamental nos dias de hoje: por mais afastados que estejamos do ponto de vista social, político ou religioso devemos ter a humildade de dialogar, de escutar o outro, de reconhecer o valor da ideia daquele que pensa diferente, de reconhecer que precisamos uns dos outros e, sobretudo, ser capaz de amar até o meu “inimigo”. Devemos ser capazes de nos tornar próximos daqueles que mais precisam, dos marginalizados e excluídos da sociedade; somos chamados a esta amizade social (cf. carta encíclica Fratelli Tutti).

Esta parábola apresenta-nos, ainda, outras duas mensagens relevantes do ponto de vista social e político. O samaritano não ajuda sozinho este homem quase morto, em vez disso, o samaritano procurou um estalajadeiro que também pudesse cuidar daquele homem. Trata-se de um trabalho conjunto! É também importante salientar que, naquela época, um estalajadeiro era uma pessoa pouco confiável. Por isso, o samaritano teve um grande ato de confiança ao acreditar no estalajadeiro, que, por sua vez, também demonstrou confiança no samaritano ao acreditar que este voltaria para pagar eventuais despesas adicionais (para além do dinheiro deixado pelo samaritano) que o estalajadeiro tivesse ao cuidar deste homem.

Portanto, nesta parábola a confiança desempenha um papel crucial. A confiança que é tão fundamental para o funcionamento da economia, do mercado e da sociedade, mas também para a política, sobretudo, dada a atual conjuntura de fragmentação. No atual contexto, é essencial que os atores políticos procurem garantir a confiança necessária para a construção de consensos e compromissos em matérias fundamentais, como a justiça, a saúde, a política fiscal ou a educação.

Todos os ensinamentos desta parábola são relevantes para qualquer pessoa de boa vontade. Assim como o bom samaritano, todos nós somos chamados a convidar outros e a caminhar juntos. Que o bom samaritano possa ser uma inspiração para que os governantes procurem dar atenção aos que mais precisam, assim como colocar a resolução dos problemas reais das pessoas acima de quaisquer interesses pessoais ou partidários.

A este respeito, São Francisco de Assis é um exemplo e uma inspiração. São Francisco é o Santo da atenção aos mais pobres, excluídos e desfavorecidos. Seguir o seu exemplo significa governar a partir das periferias, olhando para a realidade através dos mais pobres, das vítimas e dos descartados; significa governar para resolver os problemas reais das pessoas, em particular, dos que mais precisam.

São Francisco é também uma inspiração porque, no seu tempo, foi um construtor de pontes e um promotor do diálogo. Em plena quinta Cruzada, na procura da paz, Francisco deslocou-se ao Egito para visitar o Sultão Malik-al-Kamil (o seu próximo, apesar de ser muito distante de si), apenas “armado” com a sua fé e vontade de dialogar. No ano em que se comemoram 805 anos deste episódio da vida de São Francisco, precisamos de seguir o seu exemplo e ter esta capacidade de diálogo, a capacidade de amar o próximo, independentemente da sua proximidade; precisamos de ter a coragem de construir pontes, de criar espaços de inclusão e de cooperação para que juntos possamos prosperar e viver em harmonia.

Portugal precisa de políticos que cultivem a esperança de podermos ter estabilidade, que nos possa trazer prosperidade a todos. Precisamos de atores políticos moderados, capazes de dialogar e de encontrar consensos, que permitam construir um país com futuro, um país mais justo e coeso.

Precisamos de políticos que compreendam que dialogar significa ter abertura para alterar a sua posição e, até, ser capaz de fazer cedências. Precisamos de atores políticos que substituam discursos bélicos e de ódio por discursos geradores de confiança e que se abram à busca do bem comum. Precisamos de governantes que aprendam a cultivar a virtude da temperança, de modo a controlarem as suas palavras e ações para evitar conflitos desnecessários, bem como a eliminação de espaços de convergência. Precisamos de políticos capazes de atender às necessidades daqueles que mais precisam. Precisamos de governantes capazes de gerir de forma responsável, prudente e honesta os recursos públicos em prol do benefício de todos.

Precisamos do radicalismo de São Francisco: o radicalismo da humildade e de uma fraternidade universal. Só assim podemos preservar a democracia e garantir uma sociedade mais coesa, menos polarizada, e capaz de caminhar em conjunto.

Carlos Figueira é Mestre em Economia pela Nova School of Business and Economics, onde atualmente leciona enquanto Assistente Convidado. É também membro do movimento internacional “A Economia de Francisco”, inspirado em São Francisco de Assis e lançado pelo Papa Francisco, em 2019.

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