expresso.ptJosé Soeiro - 24 abr. 17:30

A imigração é um bem, as falsas ideias não

A imigração é um bem, as falsas ideias não

A imigração é um bem e uma necessidade. Tem de ser acompanhada por políticas que garantam mais habitação, fiscalização rigorosa contra a exploração laboral, integração na lei do trabalho e na contratação coletiva, maior representação nos sindicatos e instituições políticas, acesso à língua, emissão expedita de títulos de residência e mecanismos de regularização. Muito disto está por fazer. Eis um desafio central para quem quer defender a democracia contra a mentira

No ano da Revolução, 1974, residiam no país apenas 32 mil cidadãos estrangeiros – 0,4% da população –, vindos maioritariamente de outros países europeus. Em 2022, o ano mais recente de que temos dados, o número de imigrantes em situação regular era de 782 mil - 7,5% do total de residentes, 24 vezes mais do que há 50 anos. É uma das grandes transformações desde o 25 de abril, particularmente intensa na última década.

Isto é uma boa notícia. O facto de não sermos um país de portas trancadas, acabrunhado por uma ditadura, com a juventude empurrada para uma guerra miserável, com as mulheres subalternizadas e uma fatia da população condenada ao exílio ou à emigração forçada é razão para celebrarmos. Temos vidas mais longas, somos mais multiculturais, temos mais contacto com o mundo, somos mais livres em tudo, a começar pelas relações que estabelecemos com os outros. A presença de tantos trabalhadores migrantes, essenciais para largos setores da economia, era inimaginável há meio século. Mudámos e ainda bem. Mas no Portugal de hoje, como estamos a lidar com esta transformação estrutural?

Há dias, o geógrafo e sociólogo holandês Hein de Haas esteve em Portugal para apresentar o seu livro mais recente: “Como Funciona realmente a Migração – Um Guia Factual sobre a Questão Que mais Divide a Política”, que procura desmontar 22 mitos sobre a imigração. Ainda não tive oportunidade de o ler, mas retive várias ideias da entrevista que deu à jornalista Joana Gorjão Henriques, no Público. Eis algumas: “em última análise, o problema da imigração é um problema de como tratamos o emprego”; “é preciso garantir que o Governo possa dizer aos empregadores que podem empregar imigrantes mas têm de assegurar acesso a habitação decente”; “os mesmos políticos que sugerem que os imigrantes tiram empregos são os mesmos que não mostram qualquer interesse em punir os empregadores que exploram os trabalhadores imigrantes”; “a única forma de resolver o problema é melhorar as relações de trabalho para todos, tanto para os imigrantes como para os portugueses”; “a ironia é que a melhor política é não ter fronteiras. Parece muito contra-intuitivo, mas sabemos pela História que, quando não há fronteiras, as pessoas entram e saem. A ironia do controlo de fronteiras apertado é que encoraja as pessoas a ficarem”.

São afirmações baseadas em factos, que se opõem às ideias falsas que vêm ganhando terreno no espaço público e que são exploradas por quem quer atacar a democracia. O tema das migrações, como se sabe, é um elemento unificador das extremas-direitas a nível europeu. Narrativas nacionalistas, discursos de estigmatização e criminalização dos imigrantes, defesa da “nossa cultura” contra a “cultura deles”, tudo isso faz parte de um “núcleo ideológico comum” das extremas-direitas. Essa agenda, que em Portugal não tinha muita tração, é crescentemente absorvida pelo resto da direita.

O programa de governo da AD é um bom exemplo. No capítulo dedicado às migrações, o que consta do documento é uma conversa de café, baseada em perceções objetivamente erradas e em propostas contraproducentes. Citando: “adotar o princípio de que somos um país de portas abertas à imigração, mas não de portas escancaradas” (o que quer isto dizer, exatamente?), “materializado em objetivos quantitativos para a imigração” - ou seja, as quotas para imigrantes, com limites por área profissional, política inaplicável que existia há vinte anos e que a experiência condenou porque apenas burocratiza as autorizações de residência de quem entra (e continuará a entrar se houver emprego) -, “ponderando a dimensão da segurança” - a sugestão de uma relação entre os dois tópicos revela má-fé, por ser objetivamente inexistente; é uma insinuação destinada a criar medo a partir do preconceito, como fez Passos Coelho -, “priorizando em termos de qualificações” - o que é um embuste, dado que a procura de imigrantes é aqui maioritariamente para setores indiferenciados e que faltam postos de trabalho qualificado para absorver mão-de-obra, o que explica a emigração de jovens diplomados -, “e evitando a exploração por redes ilegais e criminosas” - objetivo digno, mas que colide justamente com as quotas e obstáculos que se pretende criar para as autorizações de residência: em ambos os casos, a consequência é estimular a clandestinização dos fluxos e, por isso, aumentar a vulnerabilidade à exploração.

A imigração é um bem e uma necessidade. Tem de ser acompanhada por políticas que garantam mais habitação acessível para todas as pessoas, fiscalização rigorosa contra a exploração laboral, integração de trabalhadores de todas as proveniências na lei do trabalho e na contratação coletiva, maior representação dos imigrantes nos sindicatos e nas instituições políticas, medidas de acesso à língua, emissão expedita de títulos de residência e mecanismos permanentes de regularização. Muito disto está por fazer. Eis um desafio central para quem quer, 50 anos depois, defender a democracia contra a mentira.

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