rr.sapo.ptOpinião de José Luís Carneiro - 24 abr. 19:42

50 Anos de Abril: reforçar o compromisso democrático

50 Anos de Abril: reforçar o compromisso democrático

Comemorar 50 anos do 25 de Abril convoca para um exercício de memória. Foram cinco décadas de avanços e de recuos. Ainda assim, um percurso notável. José Luís Carneiro lembra os que lutaram por uma sociedade mais livre, mais justa, mais fraterna e mais solidária.

As comemorações dos 50 anos do 25 de Abril convocam-nos para um exercício de memória capaz de construir uma síntese de um espaço e de um tempo vividos, com muitos progressos nas condições de vida coletiva e no prestígio do Estado, e capaz de fundamentar e de fortalecer as aspirações de um futuro que ainda ambicionamos venha a ser melhor que o presente. Falo de um novo contrato social e político, capaz de contribuir para o fortalecimento da sociedade civil, a modernização e a eficiência do Estado e a qualificação das instituições democráticas.

Depois de treze anos de uma guerra colonial responsável por mais de dez mil mortos e de 20 mil inválidos e de um grave isolamento internacional, Portugal viveu o abril da Liberdade. Num quadro de grande complexidade nacional e internacional, descolonizámos, não sem sofrimento e dor, é certo, mas cumprindo o princípio da autodeterminação dos povos e entrando de corpo inteiro na nova ordem internacional, saída do pós II Guerra Mundial. Evitámos que o País se tornasse num satélite soviético e que adotasse um modelo terceiro-mundista de desenvolvimento.

Pelas mãos de José Medeiros Ferreira/Mário Soares subscrevemos a Carta dos Direitos Humanos junto do Conselho da Europa (1976) como primeiro passo do nosso percurso de integração europeia e de adoção de um novo modelo de desenvolvimento, formalmente assumido pelo punho de Mário Soares com o pedido de adesão à CEE em 1977. Reforçámos os nossos compromissos atlânticos e fomos capazes de construir uma relação privilegiada com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), quer no plano bilateral, quer no plano multilateral, de que a CPLP é um bom exemplo.

Aprofundamos e consolidámos um percurso democrático. Tornámo-nos cidadãos europeus de pleno direito e assumimos os nossos deveres.

Afirmámos querer ser uma economia de mercado, aberta, competitiva, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Uma sociedade constituída por cidadãos livres, autónomos e responsáveis. Dos “filhos dos homens que não foram meninos”, no dizer do Soeiro, aos estudantes, académicos e investigadores que hoje são reconhecidos no mundo. Construtores do seu próprio futuro. Uma sociedade aberta, plural, cosmopolita e em diálogo com os quatro cantos do mundo. Portadora de uma mundivisão compreensiva, construída secularmente no diálogo, no entendimento e na cooperação intercontinentais, valores reforçados por uma sábia diáspora presente e influente em quase todos os países do mundo.

Temos vindo a participar ativamente nas instituições do sistema multilateral. Foram 50 anos de avanços e de recuos. Ainda assim, um percurso notável.

Estamos cientes de que as metas propostas nos Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, de que somos subscritores e que orientam as nossas escolhas coletivas, são muito exigentes. A Humanidade tem pela frente desafios que impõem alterações profundas nos padrões de vida e nos modelos de crescimento. Tal como ocorre nas regiões, na UE, em cada Estado e em cada comunidade local.

Nunca é de mais lembrar alguns dos progressos alcançados nos últimos 50 anos. Em 1977/1978 tínhamos pouco mais de 81 mil alunos no ensino superior. Em 2022/2023, mais de 446 mil. Em 1981, subsistia o trágico número de 36,9% da população residente com 15 ou mais anos de idade sem qualquer nível de escolaridade. Em 2021, a percentagem era de 5,9 por cento.

Em 1974, o País tinha apenas 12 estabelecimentos de ensino superior. Em 2023 havia 287 estabelecimentos. No entanto, na saúde os números são ainda mais impressivos: em 1975 havia apenas 122 médicos por cada 100 mil habitantes, e, em 2021, 423 médicos por 100 mil habitantes a trabalhar no País. No mesmo período, passámos de 205 enfermeiros por 100 mil habitantes para 645 enfermeiros por 100 mil habitantes. Consequentemente, a esperança de vida à nascença passou de 68,2 em 1974, para os 81 em 2022, e a taxa de mortalidade infantil, que era de cerca de 39 crianças por cada mil nascidas, hoje, o número de crianças que perde a vida antes de um ano de idade, não chega a 3 por cada mil.

Por outro lado, os indicadores de habitação são muito expressivos. O número de casas passou de 2 milhões e 702 mil em 1970 para mais de 5 milhões 970 mil casas, em 2021. Em 1970, havia cerca de 81 mil casas para segunda habitação e, em 2021, mais de um milhão 134 mil casas. Em 1970, 36% dos alojamentos familiares não tinham eletricidade; 53% não tinham água canalizada e 42% não tinha esgotos. Ora, dados de 2021 mostram que, nestes três indicadores, o País deu um salto de capacitação para quase 100%, se considerarmos as fossas séticas como infraestrutura adequada ao saneamento.

Não há dúvida, uma das mais relevantes conquistas destes anos de liberdade, democracia e desenvolvimento, que ajuda a explicar os referidos progressos nos indicadores de desenvolvimento, está nos poderes locais democráticos e nas autonomias regionais e no contínuo reforço das suas atribuições, competências e meios financeiros.

Sirvo-me de dois indicadores de progresso na economia para ilustrar como o país se abriu ao exterior: por um lado, as exportações passaram de 20,4% do PIB, em 1974, para os 47,5% do PIB em 2023; por outro lado, o movimento de passageiros nos aeroportos nacionais que, em 1974, era de 4,6 milhões, foi de 56,8 milhões de passageiros em 2022.

No domínio político, devemos lembrar que em 1976 havia 5 partidos com representação parlamentar e em 2024 já havia 9, o que confirma a maior diversidade social e o maior pluralismo político. E o número de mulheres eleitas para o Parlamento aumentou muito significativamente, de 5,7% em 1976, para 33 % em 2024.

Há, no entanto, nuvens que pairam no ar. As teses revisionistas, a polarização e os extremismos estão a ganhar terreno. Será difícil compreender o Presente nas suas representaç��es sociais e políticas se não atendermos aos efeitos profundamente nocivos e duradouros nas pessoas, nas instituições e nos níveis de confiança que resultaram das crises financeira de 2008 e 2009, pandémica de 2021 e 2022 e das guerras em curso na Europa e no Médio Oriente. O deslaçar de alguns dos elementos da coesão; o acentuar do individualismo niilista e da competição que irrompeu padrões éticos e normas sociais; a polarização e o radicalismo acelerados pela transição digital e pelo compasso bipolar das redes sociais, do “nós contra os outros”; a par com a diluição das instâncias de intermediação têm contribuído para a emergência das forças iliberais e de partidos e movimentos radicais, populistas e demagógicos, que atentam contra os valores que julgávamos estabilizados nas constituições democráticas.

Nestes novos tempos, torna-se indispensável um diálogo responsável e consistente entre todas as forças democráticas que resulte num novo impulso democrático, estratégico e reformista, da sociedade e do Estado.

Constituir esse espaço de diálogo entre as instituições sociais e políticas onde cada uma das partes possa exprimir livre, consciente e responsavelmente, os seus pontos de vista sobre o nosso devir coletivo nas matérias consideradas estratégicas e essenciais é um imperativo nacional. Pela observação do que se tem vindo a passar noutras sociedades, há temas que devem estar no centro desse diálogo: o nosso contributo para o futuro do projeto europeu e para a sua maior autonomia estratégica na defesa, na segurança, na saúde, no setor alimentar e na proteção civil; na demografia e nas migrações; no crescimento da economia, na produtividade, a na inovação e na capacitação das pessoas, das empresas e das instituições; na adaptação dos territórios e da vida nas cidades aos efeitos das alterações climáticas; na energia, nos transportes e na mobilidade; na coesão social, económica e territorial; no combate à pobreza e às desigualdades.

É evidente que a complexidade das sociedades contemporâneas e as mais amplas expectativas de uma cidadania mais exigente com os sistemas democráticos no que respeita à qualidade da representação, da participação no processo de escolha pública e da cultura de transparência e prestação de contas, comporta uma necessária reforma do sistema político e eleitoral e um amplo consenso social para o desenvolvimento e a consolidação da reforma do Estado, nomeadamente ao nível dos poderes locais e regionais e da reforma da justiça.

E claro está que este impulso democrático, estratégico e reformista, tem de implicar uma grande abertura ao diálogo com as diferentes expressões da sociedade civil por parte dos partidos políticos, dos sindicatos, do movimento associativo e dos clubes cívicos. Para esse efeito, as escolas e as instituições do ensino superior são cruciais enquanto centros de saber, de investigação e de conhecimento. Devem ser uma verdadeira plataforma e mola impulsionadora da relação e da interação entre os diferentes territórios, culturas, gerações e condições sociais.

O melhor modo de honrar a memória dos que, antes e depois do 25 de Abril, lutaram por uma sociedade mais livre, mais justa, mais fraterna e mais solidária estará no estabelecimento de um novo impulso democrático, estratégico e reformista em defesa da concretização da essência dos valores constitucionais na vida das mais jovens gerações do presente e do futuro. Um novo contrato social e político capaz de atualizar e garantir o futuro dos valores de abril para os próximos 50 anos.

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