expresso.ptDaniela Antão - 24 abr. 11:38

Trusted Flaggers, ou os novos bastiões da Democracia

Trusted Flaggers, ou os novos bastiões da Democracia

Cabe à sociedade civil assumir um papel preponderante no desempenho da nobre função de sinalização de conteúdos ilegais, vestindo o papel de sinalizadores de confiança

Na era em que vivemos, a law of the land é, cada vez mais, a law of the platform. As grandes plataformas digitais, com as seus equipas privadas de moderação de conteúdos, têm vindo a substituir as velhinhas funções de soberania, entre as quais a função jurisdicional, assistindo-se à privatização e desterritorialização da função de arbitrar e dirimir conflitos: entre a liberdade de expressão e a proteção de outros direitos, ou entre a liberdade de informar e a proibição de disseminar a mentira.

Estão documentados casos paradigmáticos de disseminação de vagas de (des)informação, cirurgicamente apontadas às faixas da população ávidas daquela pilulazinha da verdade criativa que convém, desenvolvida por cientistas da psicologia comportamental de mãos dadas com os talentosos designers tecnológicos... E está montado o engodo!

Esta plataformização do Estado de Direito deixa desprotegidos cidadãos, comunidades, países e regiões inteiras. Nem sempre os incentivos das plataformas estão alinhados com a Verdade ou a Justiça. Como quando Zukerberg vendeu à Cambridge Analytica milhões de pontos de dados dos seus utilizadores para que a consultora beneficiasse os objetivos dos seus clientes, como o Brexit ou a eleição de Trump.

O trusted flagging.Seja porque as empresas donas das plataformas nem sempre conseguem ou quererão, seja porque a intervenção das autoridades públicas sobre conteúdos é facilmente rotulada como interferência governamental ilegítima sobre a liberdade de expressão, cabe à sociedade civil assumir um papel preponderante no desempenho da nobre função de sinalização de conteúdos ilegais, vestindo o papel de trusted flaggers (sinalizadores de confiança).

Em Portugal, em 1983 o Instituto de Apoio à Criança foi precursor das linhas SOS criança. Em 2015, onze entidades subscreveram um acordo de auto-regulação para a remoção de conteúdo violador de direitos autorais, estabelecendo um processo não judicial de sinalização, à data, um caso de estudo mundial, e que hoje aparece decalcado no DSA.

O Digital Services Act, é um ambicioso código de regras aplicáveis à atuação das plataformas que formaliza a figura dos trusted flaggers, mas prevê que estas entidades obtenham o reconhecimento formal do seu estatuto, mediante comprovação da sua competência e independência.

Um efeito muito sensível do exercício da função de sinalização de confiança consiste na circunstância de estar agora expressamente consagrado que uma vez notificado certo conteúdo, por ilegal, a plataforma torna-se civilmente responsável por danos decorrentes da circulação desses conteúdos após a sua sinalização. Um relatório da Amnistia Internacional culpabilizou a Meta pelo massacre do Mianmar em 2021 porque o seu algoritmo estava desenhado para aumentar o tempo de captura da atenção a todo o custo, o que era garantido graças a um discurso de inflamação do ódio contra a população Rohingya. Vozes reclamam que a Meta indemnize as milhares de vítimas.

O multistakeholderism da governação da Internet. O DSA vem convocar a sociedade civil para assumir o trusted flagging, num fenómeno que alguns chamam de multistakeholderism da governação da Internet, mas que vem carregado de desafios.

Independência. Como poderão estas entidades assegurar a isenção nos seus processos de pesquisa, identificação e notificação de conteúdos ilegais, com independência de interesses corporativos ou político-partidários?  Julgo que a integração de pessoas da academia ou da magistratura judicial pode ser um caminho.

Volumes. O fenómeno trusted flagging já existe informalmente há muito; mas os números apontam para um número muito residual deste tipo de sinalização, quando comparado com os volumes remoção por iniciativa das próprias plataformas. Segundo o relatório de transparência da Google para 2023, foram sinalizados mais de oito mil milhões de URLs abrangendo cerca de meio milhão de detentores de direitos autorais, números que impressionam e estão na origem de acusações de overblocking.

Automação. A automação parece, contudo, ser um caminho, contrapondo à má Inteligência Artificial, dos bots maléficos, um exército de bots bons. Também aqui o perigo espreita: até que ponto será aceitável deitar mão de filtros que impeçam a priori a disseminação de conteúdos antes mesmo que eles desaguem nos feeds ou resultados de pesquisa de milhões de pessoas?

Ambiguidade da manipulação. Diz a ciência que todos os seres humanos são motivados pela procura do prazer, da esperança e da aceitação social, e por evitar a dor, o medo e a rejeição social. Silicon Valley é o Crescente Fértil das técnicas sub-reptícias da manipulação da mente para gerar viciação em produtos tecnológicos, com algoritmos carregados de intencionalidade.  

Será apenas imoral explorar um distúrbio de anorexia identificado licitando slots publicitários intercalados por conteúdos de reafirmação da patologia, mantendo essa pessoa presa ao ecrã? E, se essa manipulação contribuir para agravar a doença e, porventura, ser causa de morte?

São inúmeros os temas que se debatem vivamente na Europa e no Mundo em torno da sinalização de confiança de conteúdos ilegais. 25 de abril faz 50 anos, mas sem Liberdade na Internet, não há abril em lado nenhum. Na interseção entre tecnologia e democracia, não nos distraiamos com o que a toda a hora deixamos que nos entre pelos ecrãs adentro. 

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