expresso.ptJosé Conde Rodrigues - 24 abr. 06:52

A verdade e a política

A verdade e a política

É a credibilidade argumentativa e não qualquer verdade insofismável que define a essência da política. Esta é do reino da crença e não do reino da verdade. Não é ciência, mas ideologia

Vem este título, retirado da obra homónima de Hannah Arendt, a propósito da polémica em curso sobre a dimensão da redução do IRS proposta pelo governo.

Com efeito, e lembrando de forma sintética o argumento de Arendt, podemos distinguir dois tipos de verdade: a verdade baseada nos resultados da ciência, que se podem demonstrar pela teoria e pela experiência; e a verdade de facto, cuja demonstração exige o testemunho, a corroboração de terceiros, a coerência narrativa, acerca de um determinado facto ou acontecimento.

Sublinhe-se que para a filósofa alemã, naturalizada americana e de origem judia, a força e o destino das duas formas de verdade não é semelhante. A primeira é mais sólida, mais difícil de adulteração ou falsificação. A segunda é mais frágil, sujeita à interpretação, ao contexto e à subjetividade do observador. Nas próprias palavras de Arendt, “os acontecimentos, os factos, são mais frágeis que os axiomas, as descobertas e as teorias produzidas pelo espírito humano”.

Nesta segunda versão, estamos perante uma verdade de natureza consensualizada, assente na interação dos protagonistas para que se estabeleça a respetiva factualidade. Algo semelhante ao que ocorre, ainda que para surpresa de muitos, com a fixação dos factos em que assenta o veredicto judicial.

E é aqui que entronca toda a polémica em curso sobre se o governo fala verdade quando afirma que o IRS vai baixar para um determinado valor nominativo, por comparação com o ano de 2023, e a oposição que afirma que o valor será outro, pois, na interpretação desta o montante do corte encontra-se influenciado pelo orçamento de 2024 aprovado pelo anterior Governo.

Ou, num exemplo de leitura contrária, a evidência de que a tão apregoada redução da dívida pública, por parte do anterior governo, abaixo do valor “mágico” dos 100 por cento do Produto Interno Bruto em 2023, só foi possível utilizando de forma massiva os meios afetos à capitalização futura da segurança social dos portugueses.

Isto é, para o cidadão, destinatário e, em democracia, o protagonista último da ação governativa, quem dirá a verdade? Usando a linguagem de Arendt, de que verdade falamos?

Será a política compatível com a verdade axiomática, com a verdade da ciência ou simplesmente deve limitar-se à verdade dos factos, discursiva, razoável, onde a interpretação, assente na ética da responsabilidade, é condição suficiente para a respetiva legitimidade procedimental em sociedades complexas, abertas e pluralistas?

Será que a questão da verdade na política não passa apenas de um artifício hermenêutico, retórico, ainda que um artifício da grande utilidade, legado, primeiro, pelos clássicos gregos, depois, amplamente tratado por Maquiavel, Hobbes e Espinoza, mas que tem garantido a sobrevivência das nossas democracias?

Não estaremos, mesmo sem o advento e consequente expansão das plataformas algorítmicas, enxameadas de redes sociais, perante o mesmo fenómeno de sempre: a incessante busca da justificação, da persuasão, para a nossa narrativa sobre a realidade?

A resposta só pode ser afirmativa, pois é na dúvida e não na certeza que assenta o jogo político. .

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