ionline.sapo.ptionline.sapo.pt - 23 abr. 12:26

Pelo sonho é que vamos*…

Pelo sonho é que vamos*…

Não consigo imaginar como teria sido a minha vida, as nossas vidas, se não pudéssemos ter a liberdade de falar ou de escrever, sobre o que pensamos, sobre os nossos sonhos ou as nossas angústias.

Muito se tem escrito, filmado e cantado sobre os 50 anos do 25 de Abril. Já ouvi muitíssimos depoimentos, gravações da época, testemunhos de vidas marcadas pelo antigo regime. Como já tive ocasião de dizer, as minhas memórias pessoais não existem. Eu próprio celebrei os meus 50 anos no último mês de dezembro… mas conheço a história do meu país, sei como vivia a minha família, os meus colegas da escola. Entendo muito bem as necessidades dos operários, tantas vezes transformadas em justas reivindicações.

Mas acima de tudo, sinto-me muito grato pela Liberdade conquistada. Não consigo imaginar a dor de uma mãe ou de um pai, sem saberem o que se está a passar com um filho preso por causa das suas escolhas políticas. Ou uma mulher que perde a esperança de voltar a ver o pai dos seus filhos. Inclino-me perante tantos, tantos, tantos que perderam a sua vida em cenários de guerra… Não consigo imaginar um professor proibido de ensinar esta ou aquela matéria, desde pequeno aprendi o nome e a história de um, o Professor Doutor Abel Salazar. E sei, sabemos todos, que foi assim que se viveu durante mais de quarenta anos em Portugal.

A minha veia de jovem autarca, impulsivo e determinado em trabalhar para o bem comum, confirmou-me nesta certeza de que apesar de tudo, apesar das falhas, dos golpes, dos oportunistas, das fragilidades humanas, apesar de tudo, o que mais importa é a Liberdade conquistada naquela madrugada de Abril. E precisamos de o saber transmitir às gerações mais jovens, tantas vezes condicionadas pelas escolhas dos pais em relação ao seu futuro, ou pelas reais dificuldades de se tornarem jovens autónomos e responsáveis, capazes de fazer o país avançar.

A este propósito lembro a conversa de uma mãe que me procurou, pedindo ajuda para o seu filho mais novo. O problema era aparentemente grave, pelas consequências, mas de resolução clara. O curso estava escolhido e era suposto seguir o caminho do pai e do avô. Mas chegado à Faculdade, a desilusão foi grande: praticamente todos, o que tinham para dizer a quem chegava é que nem sabiam a complicação onde se iam meter: não há trabalho para tantos, a segurança é muito pouca, tal como as remunerações; «vamos para fora» diziam entre eles, este país não tem respostas para nós. E aquela Mãe, o que me pedia era que anunciasse por todo o lado, que os adultos, os mais velhos não devem desanimar um jovem que está a começar a sua formação. É preciso que digam que nunca é fácil, que tudo exige esforço. Que ninguém fica rico de forma honesta, em pouco tempo, que todas as profissões são dignas, porque o trabalho dignifica o seu humano.

Que tem isto a ver com o 25 de Abril? Do meu ponto de vista, tem tudo.  A dose de liberdade que permite a confiança de uma conversa ou a esperança no futuro é essencial para crescer de forma equilibrada. Mas a Liberdade tem custos. E talvez que um dos maiores seja a responsabilidade que todos, todos, todos, temos de querer enfrentar perante o que dizemos e o que fazemos. Igualmente importante é a consciência social de que todos, todos, todos, temos direito a expressar as nossas opiniões, sendo permanente o esforço para nos aceitarmos uns aos outros. Nos dias que correm, nomeadamente no ambiente digital, é um desafio urgente a vencermos… juntos. Todos, todos, todos.

*Poema de Sebastião da Gama, Poeta da Arrábida, Setúbal,
1924-2024

Bispo de Setúbal

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