ionline.sapo.ptAntónio Cluny - 23 abr. 09:02

Tempos de guerra e as guerras dos nossos tempos nos 50 anos do 25 de Abril

Tempos de guerra e as guerras dos nossos tempos nos 50 anos do 25 de Abril

Nesse espírito guerreiro – deveria dizer antes guerrilheiro – assumem, para o bem e para o mal, papel decisivo os media.

1. Este mundo, esta Europa, este país são sacudidos, todos os dias, por notícias que parecem revelar uma pandemia de insanidade que se terá apossado de um número significativo dos que nos governam e de muitos que os deixam governar.

E quando digo governar não estou a referir-me, em especial, aos membros dos executivos que os dirigem, falo de todos aqueles – alguns que, sem responsabilidades institucionais, têm o efetivo poder de determinar o nosso comum destino – que, nas mais variadas e, mais ou menos, formais instâncias políticas, económicas, militares e mediáticas, influem, por efeito de atos e palavras, na sorte que a todos, e a cada um de nós, está destinada.

Não, não quero, somente, falar do ensandecido matraquear de comentadores amantes da guerra - que nunca viveram -, e que apenas a olham através dos ecrãs das televisões do chamado mundo livre, pois as outras estão-lhes interditas, para que possam, com toda a liberdade de consciência, dizer apenas o que a todos convém ouvir.

Nunca na minha vida, e ela é tão longa que me permitiu ter um conhecimento já interessado de muitas guerras - guerra do Vietnam (1963), guerra dos Seis Dias em Israel (1967), intervenção soviética em Praga (1968), das intervenções americanas em Granada (1983),  no Panamá (1989), no Iraque (1994/2000), intervenção da Nato na Jugoslávia (2000), guerra colonial de Portugal em Angola (1961), Moçambique (1964) e Guiné-Bissau (1963) e outras que, de repente, não recordo -, mas nunca assisti a uma campanha tão furiosa, quanto leviana, em favor da guerra como a que existe atualmente.  

Nunca, também, constatei uma tão fraca reação pacifista à possibilidade de uma guerra mundial, que, entretanto, o Papa Francisco disse já ter começado, mesmo sem que tenhamos tido a oportunidade de tomar, desta, verdadeira consciência e sobre ela tomar posição.

A última grande manifestação pacifista que recordo, participada ativamente por Mário Soares, foi contra a primeira guerra do Iraque.

2. O espírito de guerra - numa lógica de todos contra todos – avança, porém, em vários domínios, que não apenas aqueles que se referem mais concretamente aos enfrentamentos militares.

São alguns deles que acicatam, criam umas vezes, ampliam outras, os episódios – ia dizer factos, mas reparei a tempo que nem disso se trata – que alimentam esse espírito belicista em torno de qualquer assunto que dê brado: qualquer situação que permita, no imediato, criar dois campos antagónicos, sem que os envolvidos se deem conta de que mais lhes valia concordarem em dar comum solução à questão, pois, da próxima vez, é ao outro que cabe o papel de algoz a soldo de um qualquer interesse nunca, totalmente, identificado.

Os noticiários trepidantes das TVs, as glosas rancorosas e militantes de alguns comentadores espirituosos, mas pouco informados, o baile de cadeiras que os pivots de todos esses media executam, passando de entrevistadores a entrevistados, de comentadores a jornalistas dão, hoje, forma ao modelo orwelliano da nossa comunicação social.

3. Num outro plano, não menos relevante e, porventura, até mais significativo - mas menos, muito menos, autónomo em relação aos outros campos do que se julga - somos confrontados, também, com a entrada em cena, um pouco por todo o mundo, de ousadas iniciativas de investigação criminal que têm de comum procurar, aparentemente, expor, de preferência, o que consideram ser os métodos pouco ortodoxos usados na governação atual.

Apesar dos estrondosos malogros judiciais a que, em vários países, certas delas conduziram, alguns dos que as orientaram e caucionaram – sem refletirem, seriamente, nas causas do seu reiterado insucesso, buscando, como deveriam, corrigir as estratégias e os métodos de trabalho causadores do seu mau resultado – parecem, aparentemente, mais preocupados em chamar e fixar a atenção do campo político-mediático.

Aguardemos, pois, para ver o que acontece, por exemplo, nos EUA, com os inúmeros processos levantados a Donald Trump e as consequências políticas que, inevitavelmente, os seus desfechos judiciais originarão na conformação da Democracia nesse país.

Com notícias de inquéritos, concepturos uns, nascituros outros, que, no final, em demasiados casos, morrem prematuros, ou já de velhos e dementes, tal o tempo que alguns duram a amadurecer para que nada escape - mesmo que, assim, tudo acabe por escapar - se acrescenta mais ruído e aflição a uma sociedade já de si stressada pelas suas difíceis condições de vida, que teimam em não mudar.

4.  Neste carrocel psicadélico e alienante de notícias ao minuto – talvez, também, já psicótico – se declinam responsabilidades, se sacodem competências e obrigações, se erguem narizes e importâncias apenas formais, sem que ninguém se atreva a dizer, com sagacidade e coragem, que tais militares de livraria, tais jornalistas e comentadores especializados em conjuras de café e bares de fim de noite, e alguns émulos de justiceiros de séries televisivas de má qualidade vão, afinal, nus.

O facto de nada neles ser transparente – mesmo quando de vestes despidos – cria toda uma sensação de constante nevoeiro, que gera angústias, pânicos e desesperos, que dificultam o já de si complexo processo democrático e contribuem, afinal, não para fomentar a paz e o progresso, mas para acirrar os ânimos e para nos preparar a todos para tempos de guerra.

Fruto de tantas e tão excitantes e variadas notícias, criou-se, com efeito, uma histeria coletiva que pode - e, em alguns casos, é mesmo – ser aproveitada para provocar desabridas e despropositadas reações de massa.

Basta um caso mal sucedido – um conjunto limitado de casos – mesmo que ele não represente a realidade normal, para que todas as histerias mediáticas comecem a clamar por sangue e o rolar de cabeças, que, como todos sabem, nada resolverão se não se procurar, com honestidade e coragem política, resolver as causas dos problemas sistémicos já há muito detetados. 

As guerras, essas, são as que, em cada momento, importa a alguns promover: umas internas e dissolventes das instituições democráticas, outras externas e pulverizadoras das nações.

Será isso o que se pretende?

Haverá, ou não, tempo para todos podermos refletir e corrigir o que deve ser corrigido, sem cedências nos princípios civilizacionais já adquiridos?

Mesmo renunciando a fazer julgamentos das culpas alheias e, pelo contrário, se possível, sem escondermos nós mesmos as nossas próprias culpas e pusilanimidades na criação e manutenção dos problemas que, só agora, alguns dizem ter descoberto, não devemos hesitar.

Há que encontrar, para os problemas organizacionais de consequências imprevistas, soluções rápidas, mas seguras, capazes de resolver os agastamentos presentes e futuros causadores de reações que, inevitavelmente, só podem gerar contraditórias atitudes políticas, institucionais e pessoais.

Não tenhamos ilusões, não será com comentários mais causticantes do que informados, mais odiosos do que construtivos, mais propagandistas do que analíticos que alcançaremos algo mais parecido com um estado de justiça.

Também nós, devemos, pois, controlar os excessos do, agora tão exaltado, direito de retaliar.

Se, para neutralizar o «guerrilheirismo» político-mediático que nos acicata todos os dias, for necessário um compromisso democrático - mesmo que meramente tático - para, em tempo, se poderem desatar os nós cegos que outros enlearam, assuma-se essa responsabilidade sem vergonha nem jogo escondido.

Os que, entre nós, do lado democrático, gostam tanto de invocar o 25 de novembro, contrapondo-o ao 25 de abril, que percebam, ao menos, a importância que, para a paz civil, o compromisso político, então assumido, conseguiu alcançar.

Aproximamo-nos, perigosamente, de novo, de um momento crucial em que podemos evitar, ou não, um afrontamento social causado por muitas, diferentes e sucessivas crises: umas reais e sentidas como tal pelos cidadãos, outras nem por isso.

Saber distinguir umas das outras, é importante.

Será, pois, sempre nosso dever de democratas – um dever de cidadania plena – de, em conjunto, procurarmos encontrar, para as primeiras, soluções constitucionais simples, intelectualmente sérias – e, por isso, justas e realizáveis - para, em tempo útil, desmobilizar, ao menos, as guerras desnecessárias e os inconsequentes retrocessos que, no entanto, estas sempre comportam.

Só deste modo, nos podemos concentrar, afinal, no que é verdadeiramente relevante para uma sociedade que, exasperada, vive, ainda hoje, com reais dificuldades.

A Democracia e o que ela, a alguns, custou a alcançar exigem-nos isso.

As guerras nem sempre consagram vitórias; podem, simplesmente, resultar em derrotas para todos os envolvidos e, pior, para os que lhes são alheios e necessitam de continuar a trabalhar em paz, a fim de que eles e os seus filhos possam viver e sobreviver a cada dia que passa.

NewsItem [
pubDate=2024-04-23 10:02:19.0
, url=https://ionline.sapo.pt/artigo/812704/tempos-de-guerra-e-as-guerras-dos-nossos-tempos-nos-50-anos-do-25-de-abril-?seccao=Opiniao_i
, host=ionline.sapo.pt
, wordCount=1362
, contentCount=1
, socialActionCount=0
, slug=2024_04_23_1091269625_tempos-de-guerra-e-as-guerras-dos-nossos-tempos-nos-50-anos-do-25-de-abril
, topics=[opinião]
, sections=[opiniao]
, score=0.000000]