www.sabado.ptRui Maciel - 22 abr. 09:59

50 anos depois do 25 de abril, o que falta aos portugueses? Memória

50 anos depois do 25 de abril, o que falta aos portugueses? Memória

Opinião de Rui Maciel

Todos os anos, nas celebrações do 25 de abril, discute-se o que falta cumprir da revolução. Gosto da postura futurista, como se a revolução de abril continuasse e nós ainda fossemos parte dela. Contudo, julgo que nesta postura perde-se a outra face da moeda: o que é que era o país antes do 25 de abril.

Julgo que esta discussão não só é importante, como necessária. Já antes dos ventos da direita radical, quem nunca tinha ouvido um "No tempo do Salazar é que era"? Isto demonstra que, embora tenha havido uma revolução, a nostalgia por estes tempos manteve-se numa parte da sociedade que agora deixou de ter vergonha. Este argumento é lançado pelo académico Vicente Valentim no seu livro O fim da vergonha.

A falta de discussão do que era o país antes do 25 de abril dá azo à criação de uma mitologia à volta do Estado Novo. A obsessão pelas contas públicas, a mentalidade do "orgulhosamente sós", o distanciamento da política e da sociedade civil, e de que Salazar foi o "Salvador da Nação" dos tempos conturbados da primeira república, são alguns exemplos da propaganda que ainda hoje é usada para defender o Estado Novo. Por último, é importante realçar que estas tendências de preferências pela direita radical verificam-se exatamente em pessoas que nasceram muitos anos após o 25 de abril.

Em primeiro lugar, gostaria que houvesse mais investigação económica e sociológica sobre os 48 anos de ditadura militar e de Estado Novo. Uma das coisas que mais me custou na escrita deste artigo foi encontrar dados do século XX da sociedade portuguesa produzidos por instituições estatísticas oficiais. Além disso, os que encontrei estavam ou em fontes primárias ou em artigos académicos.

Falaremos então do que era a política económica oficial do Estado Novo e do atraso que provocou na sociedade portuguesa. Antes da Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo queria autarcia, ou noutras palavras, que Portugal fosse auto-suficiente. Frases como "O Alentejo é o Celeiro de Portugal" deveriam fazer qualquer economista arrepiar-se. Além disso, sabiam que era política oficial do Estado Novo o "condicionamento industrial"? Tal como o nome indica, a indústria era centralmente coordenada pelo governo e condicionada de acordo com as suas prioridades políticas, impedindo uma empresa de crescer organicamente. Um atentado ao desenvolvimento de qualquer economia.

Após a Segunda Guerra, a mentalidade de isolamento continuou. A Comunidade do Carvão e Aço (o tratado que iniciou a integração Europeia) foi criada em 1951 e a Comunidade Económica Europeia (que deu origem à União Europeia) foi fundada em 1957. Portugal só entra numa instituição internacional em 1960, na EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), obrigado praticamente pelo Reino Unido por ser o seu maior parceiro económico. Além desta instituição ser periférica e menos integrante que a CEE, a política do Estado Novo era anti-europeia e virada para as colónias, que resultou, entre outras coisas, na morte de dez mil pessoas, na emigração de 250 mil que fugiam ao serviço militar obrigatório e no enorme trauma coletivo que a guerra impôs em tantas outras.

Esse isolamento também era instigado na população em geral. Em 1970, cerca de 25% da população portuguesa era analfabeta. Leram bem, 1 em cada 4 portugueses não sabia nem ler, nem escrever. Além disso, ao nível do ensino superior, no grupo de pessoas entre 18 e 24 anos, só 1 em 20 é que tinha acesso ao ensino superior. Um regime tão bom não deveria ter medo de manter as pessoas fora do sistema escolar, não é?

Em relação às mulheres, sou obrigado a recorrer à Constituição de 1933. O artigo que postulava a igualdade perante a lei tinha a seguinte redação "A igualdade perante a lei (…) salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família (…)". Onde é que temos ouvido isto recentemente?

Por último, e acima de tudo, imaginemos que ignoramos os argumentos acima apresentados. Preferem mesmo defender um Estado que vigiava, torturava e matava opositores políticos? Que chegou a ter prisões como o Tarrafal? Aceitam elogiar um regime autoritário em nome do seu "suposto" e discutível sucesso económico, construído à custa da morte de pessoas que simplesmente expressavam a sua opinião? E fala-se hoje tanto da emigração, mas esquecemo[1]nos que o saldo migratório mais negativo que aconteceu em Portugal até hoje foi na década de 1960, motivado quer pelas questões económicas, quer pela Guerra Colonial. Da próxima vez que ouvirem alguém dizer que "No tempo do Salazar é que era" lembrem-se: falta-lhe a memória.

Recomendação:

O cantautor José Afonso

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