www.sabado.ptMaria J. Paixão - 21 abr. 18:28

Pedir a palavra em tempo de silêncio

Pedir a palavra em tempo de silêncio

Opinião de Maria J. Paixão

A menos de uma semana dos 50 anos do 25 de abril, as comemorações multiplicam-se, reforçadas por um espírito reivindicativo dos valores de Abril contra alguns movimentos e debates políticos dos últimos tempos. Porque a madrugada de 25 de abril não foi um evento isolado, mas antes o culminar de um longo caminho pela noite dentro, as celebrações têm evocado tantos outros momentos e pessoas que marcaram decisivamente a longa libertação do povo português. No passado dia 17 de abril, imbuída desse espírito, a Associação Académica de Coimbra inaugurou um mural de homenagem à crise académica de 1969, que se havia iniciado, precisamente, há 55 anos. O mural evoca Alberto Martins, que, a 17 de abril de 1969, pediu a palavra durante a cerimónia de inauguração do Edifício das Matemáticas. Perante a recusa de conceder a palavra ao então presidente da Direção  Geral da Associação Académica de Coimbra, os estudantes iniciaram uma série de protestos que ficou conhecida como a crise académica de 69. Entre abril e setembro, além de manifestações massivas, os estudantes fizeram greve geral às aulas e aos exames, transformando os períodos letivos em debates sobre a democratização do ensino e da sociedade, e ocuparam os edifícios universitários. A crise terminaria com a intervenção militar na cidade, a repressão policial e a prisão dos principais dirigentes estudantis.

A evocação da crise académica coimbrã não pode prescindir de autorreflexão num momento como o presente, sob pena de se esvaziar de significado a luta de resistência que seria semente dos cravos de Abril. Na cerimónia de inauguração do mural, ergueu-se entre o público uma faixa onde se lia: "Pedimos a palavra porque o silêncio é ensurdecedor". Os estudantes pediam a palavra para exigir o reconhecimento do Estado da Palestina e um cessar-fogo imediato. A forma como o pedido foi ignorado pelo próprio dirigente da Associação Académica de Coimbra que introduzia as celebrações (tendo sido atendido, posteriormente, por Marcelo Rebelo de Sousa) é sintoma do ambiente cultural que se faz sentir. A evocação da luta da resistência estudantil é uma evocação estilizada e romantizada, como valor etéreo desconectado da realidade. A importância da Memória é, precisamente, a de imprimir um estímulo de ação na História. De nada vale recordar o passado se não for para participar ativamente na sua atualização. A Memória vale-nos, sobretudo, como comburente para a luta do presente. Caso contrário, a luta do passado terá sido em vão.

A forma como as instituições e as estruturas oficiais têm lidado com os protestos e vozes de contestação ao massacre palestiniano deve suscitar especial preocupação. Nos últimos tempos, a liberdade académica tem sofrido duros golpes – professores despedidos, estudantes suspensos, palestras e conferências interrompidas e, em geral, um ambiente de censura sobre o discurso de apoio à causa palestiniana. Em território americano fala-se já num renovado macartismo, tal é o ímpeto da perseguição. Nos últimos dias, centenas de estudantes têm sido brutalizados, detidos e suspensos em vários campus universitários. Similar cenário tem sido denunciado nas universidades alemãs: desde a brutalidade policial contra estudantes dentro dos espaços universitários até ao despedimento de académicos, passando pela intervenção policial musculada em congressos.

Por cá, a erosão da memória tem-se manifestado especialmente desde que estudantes ativistas pelo clima voltaram a reivindicar os espaços das universidades como espaços de combate e de discussão democrática. O movimento estudantil pelo fim ao fóssil tem procurado reacender a chama contestatária dos estudantes universitários, trazendo para o seio da academia o último teste de força que enfrentam as democracias: a urgência climática. Se o tipo de intervenções realizadas apresenta significativa semelhança com aquelas desenvolvidas em 1969 (e 1962) – desde a ocupação dos edifícios universitários até à utilização dos períodos letivos para realizar palestas, debates e outras formas de intervenção junto da comunidade estudantil –, também a resposta institucional tem apresentado infelizes semelhanças. Os últimos dois anos saldaram-se em dezenas de detenções, condenações por crime de desobediência e o ressurgimento das forças policiais dentro dos espaços universitários, algo a que já não se assistia desde os tempos da ditadura. Precisamente em reação à repressão que se tem feito sentir, centenas de pessoas assinaram, em novembro, a carta aberta ‘Universidades sem algemas’. Na carta pode ler-se: «Chamar a polícia para dentro de uma Faculdade (…) [é] dizer à comunidade estudantil que o que dela se espera é obediência e nenhum questionamento – se sair desse plano, responde-se com autoridade e força bruta. (…) À beira do ano em que nos preparamos para celebrar meio século do 25 de Abril, tudo isto é revoltante.».

A evocação da resistência que derrubou o Estado Novo, desde as crises académicas até ao 25 de abril, exige-se hoje, mais do que nunca, ativa e não meramente passiva. Celebrar Abril não basta; é preciso fazer Abril, hoje como há 50 ou 55 anos. Nas academias, isso implica estar do lado dos que pedem a palavra; contra o silenciamento das vozes e o policiamento dos espaços universitários. Os estudantes de 69, agora imortalizados em mural, pediram a palavra, ocuparam a universidade para a democratizar, resistiram contra a opressão e ajudaram o país a imaginar o futuro por vir. Em resposta, foram presos e enviados para o ultramar. A nossa suprema responsabilidade é defender a resistência dos que hoje, com igual coragem, pedem a palavra para nos instigar a imaginar uma nova madrugada. Mais crónicas do autor 21 de abril Pedir a palavra em tempo de silêncio

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