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″O meu passaporte é canadiano, mas nasci no Congo. Era importante contar esta história através da música″

″O meu passaporte é canadiano, mas nasci no Congo. Era importante contar esta história através da música″

De passagem por Lisboa, a convite da embaixada do Canadá, para um concerto no âmbito da Festa da Francofonia, o músico congoleso-canadiano Pierre Kwenders falou ao DN das suas raízes, do multiculturalismo do Canadá e de como está a marcar a paisagem artística daquele país.

Alto, casaco preto comprido, grande saco ao ombro, óculos de sol e as rastas do cabelo acomodadas em três carrapitos, Pierre Kwenders não passa despercebido quando chega ao LX Factory. Sentamo-nos numa esplanada acabada de montar e é em torno de dois pastéis de nata (que ele acompanha com um chá) que falamos sobre a sua ida de Kinshasa para Montreal - chegou num dia 25 de dezembro e ainda hoje se impressiona com a velocidade com que limpam a neve após uma tempestade -, da homenagem que faz ao avô com o seu nome artístico e do seu último álbum, José Louis and the Paradox of Love, em que recupera a sua verdadeira identidade. E não nos separamos sem antes o músico, que já trabalhou com Branko, confessar o desejo de vir a colaborar com uma fadista.

No ano passado ganhou o prémio Polaris com o seu último álbum. Foi o maior reconhecimento do seu trabalho?
Definitivamente, porque não é um prémio qualquer. No Canadá, o Polaris distingue todas as categorias musicais, todos os géneros, todas as línguas, porque o Canadá é em primeiro lugar um país multilinguístico, na base. Fala-se francês, fala-se inglês, além das várias línguas das Primeiras Nações. Entre os álbuns selecionados para o prémio Polaris, havia precisamente trabalhos em todas estas línguas diferentes. E eu até canto em várias línguas ao mesmo tempo. É uma honra, é um bonito reconhecimento, senti-me emocionado. E mostra que estou no bom caminho e que tenho de continuar.

Nasceu no Congo, em Kinshasa, e chegou ao Canadá adolescente, com a sua mãe.
A minha mãe chegou um pouco antes de mim. Ela chegou no ano 2000 e eu segui-a no ano seguinte.

Porquê o Canadá?
A minha tia Félicité, a irmã mais nova da minha mãe, vivia no Canadá já há alguns anos, desde o início dos anos 90, mas era a única da família a viver ali. O Canadá é longe quando se olha a partir de Kinshasa [risos]. A minha tia voltou ao Congo de férias um verão, penso que foi em 1999. E convenceu a minha mãe a ir ter com ela ao Canadá. Para ela se sentir menos sozinha, até porque a minha tia e a minha mãe eram unidas, duas irmãs de idades muito próximas. Paz à sua alma, a minha tia já não está entre nós hoje. Infelizmente. Mas é um pouco por causa dela que a minha mãe se mudou para o Canadá. E eu, como único filho da minha mãe, não tinha outra hipótese a não ser segui-la.

E que idade tinha nessa altura?
Cheguei ao Canadá com 16 anos. A 25 de dezembro de 2001. Em pleno inverno. Estava frio. Não havia folhas nas árvores, estava tudo branco. Como era dezembro, o frio não era assim tão mau. É mais janeiro, fevereiro que são piores. Por isso ainda tive tempo de me ajustar. O que me impressionou mais foi ver a quantidade de neve. Porque neva muito em Montreal. Neva em geral no Canadá, mas em Montreal neva mesmo muito. Foi incrível. E a eficácia do serviço de limpeza da neve depois das tempestades? Isso sim é impressionante. Ainda hoje me impressiona a velocidade com que eles fazem aquilo.

"Cheguei ao Canadá com 16 anos. A 25 de dezembro de 2001. Em pleno inverno. Estava frio. Não havia folhas nas árvores, estava tudo branco. Como era dezembro, o frio não era assim tão mau. É mais janeiro, fevereiro que são piores. Por isso ainda tive tempo de me ajustar. O que me impressionou mais foi ver a quantidade de neve."

Com a sua história, sente que personifica um pouco o multiculturalismo do Canadá hoje em dia?
Podia dizer que sim. O Canadá representa um pouco esse país multicultural. Vê-se sobretudo nas grandes cidades, como Montreal, de onde eu venho, mas também se vê muito em Toronto, Vancouver, Calgary, Edmonton,... Mas Montreal sobretudo tem este lado encantador por estar subentendido ser uma cidade bilíngue. Apesar de ficar no Quebeque, que é francófono, é uma cidade bilíngue, onde há tanto de cultura anglófona, como de cultura francófona. E isso sente-se independentemente dos bairros onde vivemos. Nestes bairros que são tão francófonos como anglófonos, há todas estas pessoas oriundas da imigraç��o - africana, das Caraíbas, e temos as Caraíbas francófonas, com o Haiti, que em Montreal é a maior comunidade negra, mas também as Caraíbas anglo-saxónicas, com os jamaicanos e os oriundos de todas as outras ilhas. Isso cria um melting pot tão magnífico que o resultado são artistas como eu. Mas houve outros antes de mim, grupos que representam esta diversidade cultural da cidade.

Sente que não há barreiras, que as comunidades se misturam sem problemas?
As barreiras são sobretudo sistémicas, vi isso quando comecei. Há coisas que sei hoje que gostava de ter sabido na altura, há dez anos, que me teriam permitido ter acesso mais rapidamente a certas subvenções, etc. No meu caso, levou o seu tempo. Mas permitiu-me adquirir conhecimentos. E hoje, com o meu coletivo Moonshine, temos o Club Sagacité, que é um centro que criámos para oferecer o que nós não tínhamos há oito ou dez anos. Mas penso que o lugar está lá. Quem quiser pode ocupá-lo. O que é difícil é encontrar informação e ter pessoas para nos guiarem, porque muitas vezes estamos em minoria. Hoje isso está a mudar e fico feliz por ver que há cada vez mais artistas jovens, DJs ou cantores, como eu, no Canadá no geral e também no Quebeque. Leva tempo. Eu penso que o que me dá mais prazer é transmitir à nova geração este conhecimento que eu fui adquirindo ao longo dos anos. À próxima geração da diáspora também, que muitas vezes não se revê nos meios culturais em países como o Canadá, numa província como o Quebeque, e mesmo numa cidade como Montreal, ainda hoje.

O seu nome artístico é Pierre Kwenders, é o nome do seu avô...
É o nome do meu avô. Na verdade ele chamava-se Pierre Kankwendé. O meu avô era um jovem comerciante, empresário, mas que também tinha um certo amor pelas artes, porque tinha algumas livrarias nas ruas de Kinshasa nos anos 1960, 1970. As livrarias Kwenders, e outras lojas. Ora Kwenders é o diminutivo de Kankwendé. Foi uma questão de branding, ele quis encontrar um nome mais fácil para o comércio e Kwenders foi ficando. Eu achava adorável, por isso quando decidi entrar na música não queria necessariamente manter o meu nome verdadeiro. Queria separar um pouco as duas identidades. E achei que Pierre Kwenders servia muito bem. E ao mesmo tempo era uma forma de eu o homenagear. Porque enquanto ia crescendo, a nossa avó falava-nos muito dele. Eu nasci na casa que era do meu avô.

"Quando decidi entrar na música não queria necessariamente manter o meu nome verdadeiro. Queria separar um pouco as duas identidades. E achei que Pierre Kwenders servia muito bem. E ao mesmo tempo era uma forma de homenagear [o avô]."

Não o conheceu?
Não. Ele morreu nos anos 1970, tinha a minha mãe 12 anos. Eu nasci na mesma casa, no mesmo bairro. Os vizinhos viram-me crescer e muitas vezes falavam-me dele. São recordações que ficaram gravadas na minha memória. Foi um prazer usar o nome dele numa espécie de homenagem.

Mas voltou ao seu nome verdadeiro no título do seu último álbum.
Este último álbum chama-se José Louis and the Paradox of Love. A história contada neste álbum é um pouco a história do meu percurso. O de um jovem que deixou o Congo. E não foi o Pierre Kwenders que deixou o Congo, fui eu, José Louis Modabi. Fui eu que me mudei para o Canadá e, aqui chegado, descobri muitas coisas. Sobre mim próprio, sobre a sociedade, sobre a vida no geral. E isso fez de mim o homem que sou hoje. A maior parte destas experiências que vivi foram experiências amorosas. Estou a falar tanto de amor íntimo, como de amor maternal, amor fraternal, amor amical. Tudo isso se encontra neste álbum. Porquê Paradox of Love? Porque o amor é sempre complicado. Tenho uma música com o músico francês Clément Bazin chamada Classe Tendresse que mostra essa complicação. A beleza disto é que temos de aprender com os erros e admiti-los. Achamos que temos sempre razão, mas não temos. Sobretudo no amor, não temos sempre razão. Queria contar a minha experiência com o amor, mas também com a minha sexualidade. Ao crescer descobri coisas que não sabia, ou melhor, que quis ignorar durante muitos anos. Queria falar disso, partilhar essa experiência. Porque acredito que há muitos jovens como eu que precisam de ouvir estas histórias e que precisam de ver alguém como eu prosperar apesar das probabilidades.

E para transmitir essa mensagem sentiu necessidade de misturar os géneros musicais: música africana e pop, hip hop?
Em primeiro lugar eu acredito que a música não tem fronteiras. O mais importante para mim era contar a minha história. Hoje o meu passaporte é canadiano, mas nasci no Congo, continuo a ser congolês. Cresci no Congo, a cultura congolesa está impregnada em mim e nunca me vai deixar. Por isso era importante para mim contar esta história através da minha música, através das sonoridades do Congo que se encontram um pouco por toda a minha música. Mas fui sempre uma pessoa curiosa, sempre quis ver o que os outros faziam, como o faziam, ver se podíamos criar uma ponte entre as diferentes culturas. E espero conseguir fazê-lo bastante bem. Foi a minha curiosidade que me levou a trabalhar com portugueses, como o Branko, também com outros artistas como Studio Bros. Isto só para falar de Portugal. Mas também já trabalhei com colaboradores do Chile, dos EUA,.... Não gosto de me limitar. Tenho vontade de partilhar, de descobrir o outro, de ver o que podemos fazer juntos. Muitas vezes nas colaborações criamos coisas bonitas. É raro não correr bem. E é o que me dá mais prazer.

Canta em várias línguas. Sente que a mensagem é mais importante do que a língua em que o transmite, seja francês, inglês, lingala ou tshiluba?
Sem dúvida. É essa a beleza da música. Gosto de dizer que a música não mente. Quando a música fala às pessoas, elas não têm de perceber tudo. Mas de maneira inconsciente, percebem. Aprendi isto com a minha própria experiência: cresci a ouvir artistas da África do Sul, como Yvone Chaka Chaka ou Miriam Makeba. Também Cesária Évora. Não percebia nadinha do que ela dizia, mas adorei. Era magnífica, fazia-me voar, ela falava-me, de uma forma ou de outra. E é exatamente isso que quero que as pessoas sintam quando ouvem a minha música. Depois, se quiserem saber o que diz a letra, hoje o Google traduz até o lingala. É fácil. [risos]. Mas é esta conexão intrínseca que se faz de forma natural, em que não temos de perceber tudo mas entendemo-nos. Sentimos.

"Cresci a ouvir artistas da África do Sul, como Yvone Chaka Chaka ou Miriam Makeba. Também Cesária Évora. Não percebia nadinha do que ela dizia, mas adorei. Fazia-me voar. E é exatamente isso que quero que as pessoas sintam quando ouvem a minha música. Depois, se quiserem saber o que diz a letra, hoje o Google traduz até o lingala. [risos]."

Sente que o multiculturalismo canadiano está a transformar as artes, que se reflete cada vez mais na paisagem artística? É uma riqueza que o Canadá está a ganhar?
Sem dúvida. Estive recentemente nos prémios Juno - é um pouco como os Grammy do Canadá - e houve pela primeira vez uma atuação de um cantor do Punjabe. Na gala dos Juno, na televisão nacional! É magnífico ver isto acontecer. Em termos de artes, penso que estamos apenas a começar. Ainda há muito a fazer, muitas etapas, muitas mudanças que são necessárias. Mas o esforço está a acontecer. Há pessoas que querem mudar as coisas, que querem que haja mais portas abertas para todos, mais possibilidades para todas as comunidades, estejam onde estiverem, seja qual for a sua cidade.

Estava a falar há pouco das suas colaborações com músicos portugueses. Podemos esperar mais no futuro?
Eu gostava muito. A minha próxima missão com a música portuguesa é fazer uma colaboração com uma cantora de fado. Não conheço muitas, mas gostaria de descobrir esse universo. Adoro a melancolia. A música que se pode considerar depressiva inspira-me muito.

helena.r.tecedeiro@dn.pt

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