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Sónar Lisboa 2023: rave estilizada ou festarola de sábado à noite? Nada disso, é só um festival a precisar de se encontrar

Sónar Lisboa 2023: rave estilizada ou festarola de sábado à noite? Nada disso, é só um festival a precisar de se encontrar

No segundo dos três dias da segunda edição do Sónar Lisboa, Peggy Gou foi rainha e senhora da pista de dança, mas o que encontrámos foi um festival à procura de uma identidade perdida nas estrangeirices da capital

Com um cartaz francamente menos ambicioso do que o da edição de estreia, ou pelo menos mais fechado nas eletrónicas de dança pura e dura, o Sónar Lisboa resolveu o maior problema sentido há um ano – a grande dispersão de salas e consequente dificuldade de circulação – mas acabou por esbarrar noutro. O segundo dia desta segunda edição da versão portuguesa do festival, nascido há 30 anos em Barcelona, prometia e cumpriu: “sala” cheia, a abarrotar mesmo, para a festa de sábado à noite, com a DJ e produtora sensação sul-coreana Peggy Gou como atração principal. Com a quase totalidade das atuações concentradas no Pavilhão Carlos Lopes, no Parque Eduardo VII, distribuídas por três palcos, dois deles exteriores, o ambiente no interior torna-se quase irrespirável, desconfortável e intransitável quando toda a gente para ele conflui. Nada a que os amantes de música de dança não estejam habituados ou até anseiem, mas, então, o que separa este festival de uma saída à noite na discoteca mais concorrida da cidade?

Quando a equipa da BLITZ chega ao recinto, ao final da tarde, a dispersão entre palcos é ainda muita. Quedamo-nos pelo exterior, onde, no espaço SonarVillage assistimos à passagem de testemunho entre Mingote e Nigga Fox, um dos nomes mais destacados da efervescente Príncipe Discos. O DJ e produtor luso-angolano serve um set hipnótico, por vezes psicadélico, por vezes introspetivo, alimentado a batidas minimalistas, uns quantos loops de guitarra e ritmos sempre intensos, tentando aquecer os ânimos de quem luta contra chuviscos fortuitos e um vento pouco acolhedor. Aos poucos, a tenda que alberga o palco vai-se compondo, e quando os britânicos Sherelle e Kode9, nome maior do dubstep, entram em cena, atirando-se de cabeça a uma remistura acelerada do clássico ‘Groove Is in the Heart’, já ninguém parecia querer arredar pé.

DJ Nigga Fox no Festival Sónar, Lisboa DJ Nigga Fox no Festival Sónar, Lisboa Rita Carmo DJ Nigga Fox no Festival Sónar, Lisboa DJ Nigga Fox no Festival Sónar, Lisboa Rita Carmo 17

Atravessamos para o lado oposto do Parque Eduardo VII ao encontro de Glor1a, artista multidisciplinar baseada no Reino Unido que traz o espetáculo audiovisual “I Choose Not to Die” ao palco da Estufa Fria, o mais experimental da edição deste ano do Sónar Lisboa e casa da programação Sónar+D, onde a música se cruza com a inovação. Antes ainda de ocupar o espaço com a sua voz envolvente, a artista convida o público, parco em número mas não em interesse, a entrar no seu mundo digital, criado em parceria com a artista canadiana Frances Adair, através da tecnologia de realidade aumentada. Entre digitalismos com árvores reais em pano de fundo, Glor1a atira-se, de forma animalesca, a canções de forte intensidade, como uma ‘Son of a Gun’ desembrulhada com contorcionismos vocais, ou uma inebriante e lasciva ‘Cracked Out Dreams’, ambas incluídas no EP “Metal”, editado há dois anos. “O meu nome é Glor1a. Obrigado por estarem aqui. Criei este espetáculo no ano passado quando bati no fundo do poço e precisei de encontrar energia para me erguer”, explica a artista, “podes decidir ficar lá no fundo ou decidir lutar. Este espetáculo é sobre luta”. E é nessa luta-performance, guiada com gestos de mão biónica, que descobrimos uma voz do futuro, entre batidas intrigantes e minimalistas.

Glor1a no Festival Sónar, Lisboa Glor1a no Festival Sónar, Lisboa Rita Carmo Glor1a no Festival Sónar, Lisboa Glor1a no Festival Sónar, Lisboa Rita Carmo 112

De volta ao Pavilhão Carlos Lopes, entramos num espaço SonarClub expectante: o francês Folamour entrega-se, nos momentos finais do set que antecede a atuação de Peggy Gou, aos Bee Gees de ‘Staying Alive’, para gáudio da plateia. A DJ sul-coreana é, sem margem para dúvidas, a grande estrela da noite, mas para quem já dança há largas horas o que interessa verdadeiramente é a batida, venha ela de quem vier. “Puxa! ‘Bora cara**o!”, são os incentivos que mais ouvimos quando Gou se perde num ziguezague de introspeção e euforia. O chão treme, o ar torna-se cada vez mais irrespirável e não há como escapar às irrequietas figuras geométricas projetadas no ecrã gigante que fundeia o palco, mesmo que através do telemóvel do vizinho da frente. Envolvemo-nos em melodias agrestes com batimentos arrastados, somos atropelados pelo clássico ‘Weapon of Choice’, de Fatboy Slim com Bootsy Collins, sentimos as estocadas profundas, quase militares, de quem exige mais “energy”, muito mais “energy”, e encontramo-nos com as Bananarama ‘on speed’ numa ‘Venus’ galopante.

Peggy Gou no Festival Sónar, Lisboa Peggy Gou no Festival Sónar, Lisboa Rita Carmo Peggy Gou no Festival Sónar, Lisboa Peggy Gou no Festival Sónar, Lisboa Rita Carmo 110

Quando olhamos em redor, por entre todas as personas que tentam colori-lo, deparamo-nos com um evento encerrado numa crise de identidade que vai ao encontro de uma cada vez mais triste realidade lisboeta: a tentação de se deixar levar pelos apelos de um ‘nomadismo digital’ que torna tudo mais inacessível. A democracia vivida na pista de dança sempre foi o seu mais importante atributo, mas este Sónar Lisboa, de hoje, parece espelhar o culto do privilégio de uma metrópole que até se pode chamar Lisboa, mas já tem pouco de lisboeta. O mais curioso é que, comparativamente ao ano passado, talvez até tenhamos ouvido falar mais português... nem por isso sentimos que o festival é menos para “estrangeiro” ver. E um estrangeiro que, podendo, certamente não pensaria duas vezes antes de trocar Lisboa por Barcelona, onde o Sónar receberá, em junho, um cartaz de primeira linha: Aphex Twin, Fever Ray, Little Simz, Laurent Garnier, Oneohtrix Point Never, Shygirl, The Blessed Madonna, Honey Dijon são apenas alguns dos nomes confirmados. O investimento em Lisboa foi pouco, há que dizê-lo. O sucesso, no entanto, parece garantido.

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