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Avalanches, abalos, trepidação e chá no quarto dia do Tremor

Avalanches, abalos, trepidação e chá no quarto dia do Tremor

Concertos vistos de Kaito Winse, Penelope Isles e Grove. Festival termina este sábado nos Açores e escorre pela madrugada de domingo adentro.

Há um som muito peculiar que acompanha toda a gente que aqui anda no ar em Ponta Delgada: o tinido perpétuo das cordas das velas embainhadas a bater nos mastros dos barcos que ondeiam imotos na marina das Portas do Mar, o local onde acabam todos os concertos do festival Tremor Açores 2023.

Como são várias dezenas de navios e batéis e aqui há sempre vento, esse som, sobretudo à noite quando se evapora o rumor dos carros da marginal, um som eólico e sáfico de metais misteriosos ouve-se muito nitidamente e fica a ressoar em cada um de nós, íntimo e mavioso como os sons noturnos do hardware fantasma de Burial, como se ali houvesse uma orquestra de câmara invisível tocada por vulneráveis músicos experimentais e imateriais.

Evidentemente que a partitura está sempre a mudar e essa performance holocénica de lufadas e rajadas imortais é a única que nunca acaba, não se sabendo jamais em tempo nenhum onde pode ir parar. Quem puder ouvir, olhe e depois repare, é uma coisa praticamente paranormal.

O griot especial da Avalanche Kaito

Desse mesmo domínio, isto é, dos assuntos que quase não se podem explicar cientificamente, mas agora com ferocidade e canícula, foi a performance do trio Avalanche Kaito, que junta o cantor burquinabês Kaito Winse com um duo punk-noise de Bruxelas, de guitarra e bateria, e que resulta numa nova coisa, ancestral e futurista.

A atuação foi no Solar da Graça, um restaurante tradicional daqueles de mobiliários rústicos e candeeiros de rodas agrícolas de ferro, mas também bolhas de espelhos disco, com varandim a toda a volta, a banda no meio da sala e ao nível dos espectadores, que ficavam ali mesmo em cima da boca da banda, olhos gordos a sorver tudo.

A parte sónica instrumental é um vendaval e o epicentro desse temporal é Kaito, um especialíssimo griot - um griot é uma pessoa que pertence a uma casta profissional de depositários da tradição oral africana, que exerce funções de poeta, músico, cantor e contador de histórias, a quem são frequentemente atribuídos poderes sobrenaturais.

Ele dança e canta, hipersónico e gutural, bate num batuque feérico debaixo do braço e esgrime uma flauta da forma que Jimi Hendrix a esgrimiria se Jimi Hendrix tocasse flauta - faz a flauta falar como uma cobra, uma cobra a sibilar. O público que enchia o Solar - no Tremor enche tudo sempre até cima, quase não sobra espaço nem para as moscas - rejubilou aos guinchos, o Solar exaltado, quente, quente, cheio de gente.

E vocês, já tomaram banho nus nas Furnas?

Sair dali para os Penelope Isles, no Auditório Luís de Camões, tudo sentado e, claro, muito cheio, é como passar dos insondáveis despenhadeiros do Grand Canyon para um prado plano pastoral onde tudo o que floresce é raso.

O arquipélago da banda britânica dos irmãos Jack e Lily Wolter, aqui presente em trio de guitarra, baixo e bateria - cantam os dois e os dois têm vozes finas e feminis -, é indie-pop-rock alado, bem-feito, proporcionado, bem-posto. Mas nada daquilo tem risco, espanto ou medo, não há abismos nem saltos de superação.

Às tantas, diz a Lily virada para nós num daqueles interlúdios entre canções em que os músicos tímidos fingem que estão a afinar as cordas das guitarras: "E já alguém daqui tomou banho nu nas Furnas?". O público sorri, aqui e ali a aquiescer que sim, e ela completa, enquanto continua a remexer nas tarraxas do seu baixo: "Hoje estivemos lá, nas "fûrnâsh", he-he, é como nadar numa gigantesca chávena de chá, não é?". Pois é, mas enquanto a termalidade da água ferrosa das Furnas nos deixa com calores exuberantes e exsurgentes, a música dos Penelopes Isles, sendo bonitinha, límpida e quentinha, não passa de um chazinho.

"E os vossos senhorios, o que é que lhes querem dizer?"

Mas o resto da noite do quarto dia do Festival Tremor Açores ainda guardava um movimento violento e vibratório para celebrar: Grove.

Ela, uma irrequieta e incitante medusa negra de cabelo tentacular, que atuou ali na caixa negra das Portas do Mar com uma seráfica DJ, é uma produtora de Bristol e o seu som, como ouvido no EP "Queer + Black", é uma rave de celebração e é muito exultante. Ela mete num saco uma infusão de cobras: dancehall, punk, jungle, dum "n" bass, pop-queer e experimentação e aquilo tudo aos saltos faz dançar em headbanging como nos concertos de metal. O som está em constante mutação, as misturas de ruído confundem-se em energias femininas e masculinas que colidem, e tudo aquilo, que às vezes assusta, é eufórico e sensual.

Está também cheia de angústia política, a música de Griove, e de uma certa "malaise" de acusação aos tempos socioeconómicos de hoje, que nos pode tudo menos rendição. Às tantas diz ela, a Grove, dedo ríspido no ar, microfone erguido num megafone, a andar de um lado para o outro do palco como uma pantera sem parar, a apontar a crise da habitação: "E os vossos senhorios? O que querem dizer aos vossos senhorios? Eu digo-vos o que podem dizer aos vossos senhorios: 'Fuck you, landlord!"". E o povo todo, que já estava ali na pista todo aceso a dançar no queimor, levanta todo ao mesmo tempo uma floresta de dedos médios no ar e todos repetimos com ela "fuck you, landlord!", "fuck you, landlord!", num coro de corpo inteiro, unos e indivisíveis, sem vontade de nunca mais parar.

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