visao.sapo.ptsvicente - 31 mar. 12:47

Visão | Vampirismo político

Visão | Vampirismo político

Como seria de esperar, houve logo quem tentasse retirar dividendos da dor alheia, alertando para o perigo terrorista associado à vaga de imigrantes e refugiados. Sempre disse que conjugar na mesma frase “terrorista” com “refugiado” era uma falacia mortal, com a xenofobia e a intolerância como únicos objetivos

A mentira, a intolerância e a ignorância são as maiores inimigas da democracia. Se a estas juntarmos o ruído, o boato, o eco dado pela comunicação social e pelas redes sociais, temos o gérmen de todas as ditaduras.

Com a bonomia que nos caracteriza, Portugal vai deixando crescer estas sementes, aparentemente inofensivas, sem se aperceber da forma como vão minando tudo em seu redor.

Em política, tal como na vida, não vale tudo. Mas a cada dia que passa o espectro do que é permitido, socialmente aceite, alarga-se duma forma vampiresca. Assistimos, impávidos e serenos a verdadeiros assassinatos de personalidade, só porque sim, a condenações em praça pública só porque também. A perversidade desta situação é que, ao alastrar-se, fragiliza as estruturas até daqueles que, sendo livres e de bons costumes, podem começar a ter dúvidas. Quem fala primeiro, mais alto e para mais gente nem sempre é quem tem razão.

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A última terça, 28, foi um dia negro para toda a comunidade residente em Portugal, seja ela islâmica, ismaelita, refugiada ou portuguesa de 15ª geração. Nenhum de nós ficou indiferente ao assassinato das duas mulheres às mãos dum tresloucado. Tratou-se dum ato hediondo que há que punir dentro do estrito cumprimento da lei e que foi, honra seja feita, limitado pela rápida intervenção das nossas forças policiais.

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Estiveram bem os responsáveis pela área da segurança e da imigração ao tentarem explicar o acontecido à luz do que se sabia antes de toda e mais completa investigação. Mas, como são membros do governo (fosse este ou outro) a quem, nuns casos com razão, na maioria sem ela, se tem vindo a efetuar assassinatos de caráter, a credibilidade resvala na vozearia dos sound bites de que um determinado senhor e companhia associada é exímio.

Sejamos claros no que dizemos e como dizemos: o cidadão afegão não era refugiado em Portugal. Era sim recolocado, tendo adquirido o estatuto de proteção internacional na Grécia, onde, aliás, e sem ser despiciendo, a mulher terá entretanto morrido. Este homem e os seus três filhos foram acolhidos em Portugal ao abrigo dos acordos de partilha de responsabilidade e solidariedade, assinados pelo nosso País e que constam do Novo Pacto Europeu para a Imigração.

Os pactos que assinamos são para ser cumpridos, sejam eles em relação à partilha de fundos de recuperação ou digam eles respeito à solidariedade e apoio aos mais carenciados e vítimas de guerras que, e aqui há que dizê-lo, muitas vezes fomentámos ou com as quais fomos, pelo menos, coniventes. Não nos esqueçamos do Acordo das Lajes e outros que entretanto foram ficando e deixando rasto pelo caminho.

Curiosamente, e quase em simultâneo, os noticiários de ontem davam conta de mais um atentado numa escola norte -americana que fez mortos entre as crianças e os professores.

Pergunta para os senhores que afirmam que o que aconteceu no Centro Aga Khan em Lisboa foi o resultado duma política de “portas abertas” à imigração: Qual a nacionalidade da jovem que ontem tirou também a vida a pessoas inocentes? Podemos dizer que os EUA praticam uma política de porta aberta em relação à imigração? Só se começaram agora a fazer buracos no enorme muro que os separa do México!!!

Que querem, pois, estes senhores? Portugal para os portugueses? Bem temos um pequeno grande problema que é saber quem são os portugueses, porquanto todos nós temos, mais próximo ou mais afastado na nossa árvore genealógica, uma etnia completamente diferente. Já para não falar dos refugiados (não gosto da palavra “retornados” porque a maioria não retornou porquanto nunca aqui tinha residido) das ex-colónias, nem todos de pele branca mas nascidos sob a bandeira verde e vermelha. Ou dos ciganos que aqui nascem e morrem sem terem conhecido outro país que não este. É-se português até que geração?

Portanto a questão da imigração descontrolada, desculpem lá o mau jeito, mas… não tem jeito nenhum e só faz eco na má fé ou na ignorância.

O trágico acontecimento de ontem veio alargar o quadro do tanto que há a fazer em relação a algo que muitos ainda desprezam mas que mata, umas vezes silenciosamente outras assim com direito a tempo de antena: a saúde mental. Para muitos ainda se trata duma falsa doença. Para os que a sofrem e os que a estudam, esta é a grande pandemia dos nossos dias.

Devido ao trabalho de doutoramento que pretendo desenvolver sobre o Tráfico de Crianças em Contexto Migratório (que o Universo tenha pena de mim que mais parece os doze trabalhos de Hércules!) acabei por “cair” num estudo sobre o impacto da doença mental nos menores refugiados .

O trabalho intitula-se Trauma and mental health of unaccompanied migrant youth in Europe, é da autoria de Daniel Calveras, Baldaqui e Baeza, e foi editado em novembro de 2022, ou seja, há meia dúzia de meses.

Tratou-se dum exaustivo estudo, que envolveu um total de 80 651 crianças e adolescentes em nove países europeus diferentes. As conclusões a que chegou devem levar-nos a integrar de forma concreta e adequada a questão da saúde mental na população em geral e na mais vulnerável em particular.

Tratando-se dum trabalho sobre menores não acompanhados em contexto de refúgio, concluiu-se que a maioria dos jovens (75% dos inquiridos) era do género masculino, proveniente do Afeganistão e que sofria de stress pós-traumático, degenerando em 61,6% para situações de depressão, 38,2 % para ansiedade e 14,3% para problemas comportamentais.

Concluíram ainda que as taxas de suicídio e morte entre estes jovens era substancialmente mais alta que as dos jovens dos países de acolhimento.

Estes números são factos, não são achismos! E é neles que nos devemos focar para tratarmos a questão do acolhimento  e integração como um todo, sob pena de tratarmos a ferida e não a doença que a provocou.

Resta agora saber que rumo será dado às três crianças que ficaram completamente sozinhas. O Centro Ismaelita já se propôs acolhê-las o que diz muito sobre o ADN da instituição.

Mas a decisão caberá ao Estado Português e este ainda não tem um Provedor da Criança como entidade autónoma.

Institucionalizá-las será um erro, por muito boa que seja a instituição. Mas do que precisam agora é de família, porque a que tinham ficou nos caminhos do desespero.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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