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Cinema: Cate Blanchett faz-nos acreditar que “Tár” é a biografia de uma mulher real. Todd Field é a mente de todo o projeto

Cinema: Cate Blanchett faz-nos acreditar que “Tár” é a biografia de uma mulher real. Todd Field é a mente de todo o projeto

Lydia Tár foi criada por Todd Field para o corpo, a voz, a vibração e o talento de Cate Blanchett. A atriz trabalhou profundamente para conseguir encarná-la e o seu desempenho - na pele de uma maestrina de sucesso - valeu-lhe a oitava nomeação para o Óscar

Lydia Tár é um daqueles cometas que atravessam o mundo da cultura contemporânea com a fulgurância do génio e o apelo popular dos grandes desportistas e das estrelas de rock. Maestrina tocada pelo dedo de Deus e pela tutoria de Leonard Bernstein que a encaminhou nos primeiros degraus, nunca parou de subir a escadaria de uma profissão difícil, mais ainda para uma mulher. Agora está no topo do mundo da música clássica — tem a titularidade da Filarmónica de Berlim, nada menos — depois de ter passado pelas orquestras de Cleveland, Filadélfia, Chicago, Boston e Nova Iorque, não exatamente da 2ª divisão.

Ainda arranjou tempo, energia e criatividade para compor para cinema, teatro e televisão, aliás, pertence ao reservadíssimo ‘clube’ dos EGOT (personalidades que ganharam um Emmy, um Grammy, um Óscar e um Tony). E está em vias de cumprir uma das grandes metas da sua vida: gravar a “5ª Sinfonia” de Mahler, a tal que tem um mistério, nas suas próprias palavras. Há ainda um trabalho adjacente que Lydia faz: tutorar jovens instrumentistas escolhidas entre as melhores das melhores que deve encaminhar para a tal escada ascensional como Bernstein fez com ela.

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É aqui que há um problema: a grande senhora da arte de Euterpe faz cumprir a algumas das suas protegidas o significado pleno do nome da musa: doadora de prazer. Afinal de contas, o poder (sim, “Tár” é uma história de poder e do seu uso), o Poder que ela tem nas mãos, não serve apenas para marcar o tempo, para pôr o relógio a andar, para transformar uma orquestra numa fábrica de música com uma ideia dentro. Maneja-o, de resto, tanto com o arrebatamento felino da paixão imperiosa como com a gélida inelutabilidade de quem se descarta de algo já sem préstimo.

É possível ler em “Tár” uma reflexão sobre o sopro de banimento cultural sobre personalidades acusadas de abuso. No caso, nem há sombra de suspeita, há certeza

Na sua entourage mais próxima há plena consciência disso. Quer a mulher com quem tem uma ligação permanente (e uma filha adotiva em comum) quer a assistente à espera de um empurrão na carreira e cuja intimidade a primeira tolera, sabem: a vida libidinosa de Lydia é um jogo de equilíbrios e suspensões que o desesperado suicídio de uma ex-amante vem pôr em causa. É então que o negro avejão da cancel culture levanta voo — e tudo se começa a fraturar.

É sempre estimulante quando um filme nos impele num movimento de vaivém face a uma personagem, o gosto e o desgosto em alternância e, às vezes, em simultâneo. E este está cheio de momentos desses, desde logo na longa cena em que Lydia enfrenta um aluno que se afirma não-binário e pertencente a uma minoria racial

É possível ler em “Tár” uma reflexão sobre o sopro de banimento cultural, em voga, sobre personalidades acusadas de abuso. No caso, nem há sombra de suspeita, ou dúvida irresolúvel, há certeza — Lydia é mesmo alguém que utiliza a supremacia do seu lugar social e profissional para obter favores de natureza sexual. Não é uma violadora, é algo mais melífluo e sagaz — e coloca-nos em jogo, pois a nossa relação de espectadores estabelecera com ela uma ligação forte, algures entre a admiração e a simpatia.

É sempre estimulante quando um filme nos impele num movimento de vaivém face a uma personagem, o gosto e o desgosto em alternância e, às vezes, em simultâneo. E este está cheio de momentos desses, desde logo na longa cena em que Lydia enfrenta um aluno que se afirma não-binário e pertencente a uma minoria racial, a prop��sito da música de Bach. Quando ele diz não lhe interessar a criação de um compositor cis, ela cai-lhe em cima com todo um argumentário que culmina com a anatemização do tribalismo identitário. É difícil não concordar com as suas razões, mas é ainda mais difícil aceitar o quase ritual de humilhação a que ela se entrega.

Lydia Tár é uma personagem de ficção, criada por Todd Field para o corpo, a voz, a vibração, o talento de Cate Blanchett. A atriz trabalhou profundamente para conseguir encarná-la e o seu desempenho valeu-lhe a sua oitava nomeação para o Óscar

Lydia Tár é uma personagem de ficção, criada de fio a pavio por Todd Field para o corpo, a voz, a vibração, o talento de Cate Blanchett. A atriz trabalhou profundamente — no piano, na regência, na língua alemã — para conseguir encarná-la e o seu desempenho é tão evidentemente superlativo que justifica, em absoluto, o Óscar que, porventura, este ano vai ganhar. É a sua oitava nomeação e já tem duas estatuetas lá em casa — Melhor Atriz Secundária em “O Aviador”, de Martin Scorsese (2005), Melhor Atriz Principal em “Blue Jasmine”, de Woody Allen (2014) — ambas por interpretações de composição.

Em “Tár” o seu trabalho é extraordinário, quase naturaliza o insólito: depois de aceitarmos a personagem enquanto pessoa, a excentricidade torna-se usual e o nosso olhar cola-se à realidade do filme. É, todavia, muito curto para a complexidade da obra, reduzi-la ao processo de cancelamento de uma grande figura do panorama musical mundial. Nem só no modo como nos relacionamos com a protagonista há oscilações. Também nos graus de realidade há deslizes que Todd Field pratica com exímia subtileza. Não os ler pode conduzir-nos a lugares mal frequentados. O maior exemplo disso está na zona terminal do filme.

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Mesmo lá no fim, quando Lydia Tár dirige a música para um videojogo no amargo desfecho de uma narrativa em que fomos cavalgando contrárias emoções, conduzidos pela arrebatada batuta de Cate Blanchett, é legítimo que a descrença se insinue no espectador. Numa primeira reação talvez o nosso coração enfraqueça, verificando que o portentoso carrossel posto em marcha por Todd Field (realizador, argumentista, produtor, autor total) não encontrou desfecho a condizer. A ascensão e queda da maior maestrina que o mundo alguma vez viu desilude na fragilidade daquele final. Não, não se acredita. Ou então…

Deixem-me fazer um parêntesis privado. Em fevereiro de 1972 estreou-se em Lisboa, no Apolo 70, “O Passado e o Presente”, de Manoel de Oliveira. Não se tratava apenas de um filme, era o alvor de uma nova esperança. Marcava, ao mesmo tempo, o retorno do velho cineasta do Porto (Oliveira tinha, então, 63 anos, o que, à época, justificava o termo) e o primeiro cometimento nascido da luminosa intenção da Fundação Calouste Gulbenkian de subsidiar o cinema português (via Centro Português de Cinema). Fui vê-lo, com carácter de urgência, no dia em que fiz 20 anos. E lembro-me do crescendo de desgostos sentidos conforme o filme avançava, do texto de Vicente Sanches, ao hieratismo dos atores. Isto é muito mau, pensei, isto é mesmo muito mau, acrescentei… Isto é… demasiado mau.

Foi aqui que qualquer coisa se acendeu em mim. Oliveira não era mentecapto, o que se passava? Só podia ser um equívoco de leitura, eu estava a ver o filme por um prisma realista, não era o ângulo certo. E se aquele tom fosse ironia, e se a pomposidade dos intérpretes fosse uma troça? Tornei no dia seguinte - e confirmei: “O Passado e o Presente” é uma comédia sublime (o César Monteiro havia de escrever que tinha o condão de desmascarar os imbecis, mas isso são contas para um rosário que não vem ao caso). O que interessa neste parêntesis privado é o exemplo de um gesto: devemos sempre pôr-nos em causa quando um autor ou uma obra com méritos parece dar para o torto. É avisado ter um pouco de humildade no olhar. Não que não possa cair nódoa no melhor pano, claro que pode. Todavia, também pode ser que sejamos nós a tresler.

Todd Field quer mesmo dizer que Lydia Tár anda por tugúrios do Sudoeste Asiático, frequenta bordéis onde se escolhem massagistas pelo número e não consegue mais do que fazer música de quinta categoria? Ou tudo aquilo se passa na cabeça dela?

Voltemos ao epílogo de “Tár”. Face à berrante dissonância, é de boa regra questionar em que registo estamos. Talvez estejamos a interpretar as imagens pela grelha errada. Todd Field quer mesmo dizer que Lydia Tár anda por tugúrios do Sudoeste Asiático, frequenta bordéis onde se escolhem massagistas pelo número e não consegue mais do que fazer música de quinta categoria? Ou tudo aquilo se passa na cabeça dela (sim, como em “A Semente do Diabo”, de Polanski, é uma coisa mental), tudo aquilo é o culminar de uma paranoia?

Se rebobinarmos o filme, seja por trabalho de memória, seja voltando a vê-lo, agora já não para seguir a história, mas para sopesar a forma, veremos que os sinais alucinatórios são vários e disseminados. Não deveríamos, aliás, ter suspeitado de algo fora das normas quando o genérico final apareceu no princípio? Ou quando Lydia seguiu Olga pelo prédio onde supostamente morava com uns amigos e encontrou uma passagem escura e húmida, um mastim desmesurado, os esconsos do medo e da ameaça? O realizador fez o trabalho de tocar as campainhas que indiciavam a deriva de um registo realista para o registo fantástico. Cumpria-nos escutar.

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Já ouço as vozes: Lydia acabou mesmo desqualificada e reduzida à quase miséria de trabalhos alimentares? Afinal como é? Há muito tempo (pelo menos desde “O Último Ano em Marienbad”) que a resposta interessa nada. “Tár”, de resto, aborda a questão. Na discussão sobre Bach e os perfis identitários na tal cena marcante, Lydia toca Bach e demonstra que aquela música é feita de trechos que são perguntas e outros que são respostas. Depois afirma: “Bach sabe que é sempre a pergunta que envolve o ouvinte, nunca a resposta.” Para o cinema é exatamente o mesmo. Eu não sei se a maestrina acaba a tocar num lugar remoto e infeto ou numa instituição psiquiátrica a ruminar obsessões. Só sei que os estremecimentos entre a primeira e a última imagem do filme (158 minutos de trajeto) nos abrem o portal para um mundo onde as questões da mente e as emoções do peito dedilham as nossas, no mundo real.

Ah! Também sei que Lydia Tár nunca há de gravar a 5ª de Mahler. E — querem saber? — tenho pena.

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