ionline.sapo.ptAfonso de Melo - 29 nov. 08:16

A Minha Estrela

A Minha Estrela

Tenho falta do meu pai. Sinto tanta falta do meu pai que a minha estrutura estremece por inteiro. Ele que viu todos os jogos daqueles dias felizes no País Triste do Euro 2004 sentado nas bancadas ao lado do seu querido amigo de infância Manuel Alegre.

DOHA - Depois foram ambos, mais o meu tio Henrique, seu irmão, a Frankfurt, em 2006, para verem Portugal ganhar ao Irão. Gostava de lhe ligar depois dos jogos da seleção e ouvir sempre a sua opinião despreocupada. Ultimamente costumava acabar as conversas com aquele toque tão especial do seu humor mais corrosivo do que ácido hidroclorídrico: “Não jogamos nada!” Distraí-me e ele foi ficando pelo caminho. Não morreu de morrer, morreu de desistir, e eu embrulhado nesta pressa confusa de escrever e de ir vivendo não olhei para o fundo dos seus olhos verdes e quase transparentes e não percebi que havia neles um cansaço desistente, uma tristeza talvez insuportável, uma desilusão também. Sim desilusão. Desilusão por um país que o tratou mal só porque foi do contra. Porque não sustentava as injustiças, ora, logo ele, juiz de corpo inteiro, desembargador por convicção, alma limpa de conselheiro do supremo, sempre sem vaidade, sempre um sábio, sempre de uma delicadeza e de uma ternura que me levou por entre todos os labirintos do carinho. Desculpa, pai, desculpa! Tu que me ias buscar à escola e caminhavas comigo de mão dada, menino de bibe branco fascinado com tudo o que me ensinaste sobre o mundo e me fizeste acreditar que há sempre um poema para cada momento das nossas vidas, nunca largaste a minha mão, nunca te esqueceste de mim, nunca me perdeste. E eu demorei tanto tempo a perceber que estavas ali na minha frente e já não eras tu, ou não eras tu por inteiro, desaparecias a pouco e pouco, devia ter-te chamado, devia ter-te gritado para não caíres nesse buraco sem fundo do qual não mais voltaste. Não, não podia ter-me distraído de ti. Tu nunca te distraíste de mim, pelo contrário, apertavas-me a mão com força na tua mão grande e eu sabia que poderia ser para sempre, descuidadamente, um menino de bibe branco. Só há uma estrela no céu escuro de Doha. Aposto que és tu. Só podes ser tu. Sabes sempre quando preciso de ti.

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