ionline.sapo.ptionline.sapo.pt - 5 jul. 10:27

Decidir é preciso, mas sem farsas

Decidir é preciso, mas sem farsas

Atente-se, porém, o povo português não é estúpido e não merece ser tratado como tal. Uma política pública é um propósito de ação, com objetivos específicos de desenvolvimento, que devem estar acima dos objetivos de partilha de poder partidário.

Portugal é um país de muitos talentos artísticos, que o digam os vários programas televisivos sobre ídolos, talentos, etc. Mas transferir esse potencial para o Governo é demasiado desrespeito pelo cidadão. 

Na semana passada assistimos a um episódio dos nossos governantes que temos dificuldade em classificar, e ainda menos em entender. Será que foi uma farsa bem montada? Será que foi uma disputa interna de um partido que verteu para o exterior? Será que foi um ingénuo e inacreditável erro de um governante cheio de experiência? Da primeira para a terceira hipótese as probabilidades baixam imenso. Comentadores, jornalistas e políticos experientes, inclinam-se para a primeira hipótese. Em qualquer dos casos é triste, e gera vergonha alheia. 

Mas será que é importante saber de facto o que está por trás do pano destas encenações de poder? Não creio, pois é muito mais grave que, perante as justificações e atos de contrição (verdadeiros ou falsos), a população tenha ficado mais ou menos indiferente. Alguns dizem “é mais do mesmo” outros dizem “é com eles… “. Esta indiferença não é mais do que a confirmação do mesmo sinal que nos é dado pelos mais de 45% de abstenções que obtemos nos atos eleitorais. Tudo isto são sinais de uma população saturada e sem confiança na classe política, e uma classe política que insiste em ignorar estes sinais. Também é triste, e põe em causa a democracia e a qualidade da governação. 

Mas ainda há pior, este incidente revela a incapacidade de decidir sobre questões de interesse nacional, como é o desenvolvimento de infraestruturas como um aeroporto, com impactes para mais de uma geração da nossa sociedade, com influência direta e indireta na economia nacional. Perante esta importância andamos há mais de 50 anos a brincar.

Este é talvez o caso mais mediático da ausência de política de transportes, mas está longe de ser o único neste setor, e muitos outros existem em outros sectores da nossa economia. Vamos distraindo a população com incidentes vários que saltam de setor em setor, ora é transportes, ora é saúde, ora é educação, ora é habitação. Os talentos para distrair a população são inúmeros, e qual o mais notável. 

O desenvolvimento de um país exige continuidade nos objetivos a prosseguir, e não um ziguezaguear ao serviço de resultados eleitorais. 

Há por isso uma pergunta fundamental a montante de todas as decisões: qual é a política de transporte aéreo em Portugal? que tipo de aeroporto precisamos no futuro? Que outas infraestruturas precisamos ter para dar uma resposta de qualidade a um potencial aumento de procura de transporte aéreo?

Quem chega a Portugal de transporte aéreo não vem para experimentar um aeroporto, seja velho ou novo. Vem para outras experiências no nosso território. Mas estamos preparados para esse aumento de procura? Ou queremos apenas um aeroporto, seja lá para o que for?

Ninguém sabe qual é a política de transporte aéreo deste país, e pelo que vemos parece não haver preocupação com esse imenso detalhe. É assim que se desperdiçam grandes oportunidades de financiamento do desenvolvimento da nossa economia, e é assim que se assustam e afastam os investidores privados. Não há maior risco para um investidor do que colocar os seus recursos onde não se definem objetivos e se deixa um setor à deriva. 

Desde 2018 que escrevi neste jornal, e argumentei em vários fora, que os projetos Montijo e Alcochete não eram alternativas entre si. O Montijo é uma solução de curto-prazo, para aliviar o congestionamento de Lisboa, que poderá permanecer como aeroporto low cost, e Alcochete é um projeto para um eventual novo Aeroporto, uma vez que se saiba o que queremos. Pelos incidentes políticos da última semana, parece que esse entendimento começa a ficar claro. E está também claro que se nada for feito, o aeroporto de Lisboa vai ter de recusar tráfego. 

O Primeiro-Ministro disse, e muito bem, que esta não deve ser uma decisão apenas da maioria parlamentar, mas sim resultado de um consenso entre forças políticas para uma decisão de longo prazo, para que não se faça hoje para desfazer amanhã. É talvez a primeira vez que esta louvável preocupação vem a público. 

Será que vamos aproveitar esta janela de oportunidade para pensar a longo-prazo nos interesses nacionais no sector dos transportes? Quem sabe, o entusiasmo nos leve a pensar uma política de transporte aéreo para o Portugal!

Aguardemos, com esperança e tranquilidade, por este possível momento de viragem. 

Professora e investigadora em transportes, Departamento de Engenharia Civil, Arquitetura e Georrecursos do Instituto Superior Técnico

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