observador.ptObservador - 4 jul. 00:03

Estabelecimentos militares de ensino: anacronismo ou jóias esquecidas?

Estabelecimentos militares de ensino: anacronismo ou jóias esquecidas?

Às direções do CM e do IPE pede-se que invistam nos fatores diferenciadores, como o internato, a instrução de matriz militar, a inclusão, o encorajamento das tradições e o aprofundamento dos valores.

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Manifestação de interesses, não sou antigo aluno de nenhum dos dois estabelecimentos militares de ensino (Colégio Militar e Instituto dos Pupilos do Exército), mas sou pai orgulhoso de dois alunos de um deles.

Uma pequena introdução a estas duas escolas. O Colégio Militar (CM) foi criado em 1803, pelo Marechal Teixeira Rebelo e tinha na sua génese o intuito de providenciar aos filhos dos oficiais das Forças Armadas (Marinha e Exército, nesses tempos) uma formação escolar de qualidade, garantindo o seu cuidado enquanto os pais defendiam o Império, dentro ou fora do território continental.

O Instituto dos Pupilos do Exército (IPE) nasceu em 1911, já depois da implantação da República, com o objetivo de garantir uma educação mais técnica, sendo, no seu início, destinado aos filhos dos sargentos que, pelas necessidades do serviço, se encontravam também fora de Portugal continental.

Os tempos passaram. O Império acabou. Terá, com o fim deste, acabado a razão de ser destas duas instituições?

Actualmente, a missão dos dois estabelecimentos militares de ensino refere, no caso do CM, o objectivo de “assegurar uma sólida formação de matriz militar, intelectual, técnica, física, moral e cívica, inspirada nas qualidades e virtudes da vida militar, e na prossecução dos princípios fundamentais definidos no Sistema Educativo Português, bem como relevar o papel da Defesa Nacional e das Forças Armadas na sociedade”

No caso do IPE, “ministra os 2º e 3º ciclos do ensino básico e o ensino secundário, na modalidade de ensino profissional, num sistema de ensino misto, em regime de externato e de internato. Assegura uma sólida Formação de Matriz Militar, intelectual, técnica, física, moral e cívica, inspirada nas qualidades e virtudes da vida militar, e na prossecução dos princípios fundamentais definidos no Sistema Educativo Português, bem como relevar o papel da Defesa Nacional e das Forças Armadas na sociedade.”

Relativamente à missão, as duas grandes diferenças entre um e outro prendem-se com o facto de o CM ministrar ensino orientado para a vertente académica, nos três ciclos do ensino básico e no secundário, enquanto o IPE se centra no ensino profissional, nos 2° e 3° ciclos do ensino básico e secundário. Ambos são duplamente mistos (masculino/feminino, no regime de internato/externato). No que diz respeito aos valores (consultadas as fontes já referidas), o Colégio Militar sublinha os seguintes: disponibilidade, disciplina, honra, lealdade, coragem, patriotismo, camaradagem, solidariedade e liderança. O Instituto dos Pupilos do Exército destaca o respeito pelos valores pátrios, o apelo ao estudo e ao trabalho, a assunção de responsabilidades, a obediência consciente, a promoção do mérito, a galhardia e a lealdade.

Uma análise menos cuidada pode conduzir ao erro de considerar estas escolas como institutos de algum modo anacrónicos, ou seja, não teriam lugar nas sociedades atuais, já que às mesmas subjaz um conjunto de valores que parecem distantes de vivências que colocam, em primeiro lugar, o conforto e o bem-estar. No entanto, numa abordagem mais aprofundada, concluo que cada estabelecimento militar de ensino tem o objetivo de formar cidadãos completos, com princípios éticos fortes, disciplinados, destinados à formação de líderes, com a consciência de que compete ao Estado garantir a segurança e a defesa da comunidade pela qual é responsável. Para o cumprimento da missão de cada um dos estabelecimentos, considero que há uma quota de responsabilidade do Estado, do Exército, das suas direções, dos encarregados de educação, dos alunos e da sociedade que acolherá o seu serviço.

Atualmente, tenho a percepção de que o Estado, através do Ministério da Educação, parece não distinguir estas escolas de outras, mantendo uma visão deturpada, em meu entender, acerca da sua missão e pertinência. O Exército, debatendo-se com falta de recursos, humanos, materiais e financeiros, enquadra estes dois estabelecimentos no seu dispositivo normal, fazendo a gestão de acordo com as suas prioridades. Obviamente que as primeiras prioridades serão a componente operacional e a sua sustentação, onde estas duas escolas não se inserem. Enquanto as receitas provenientes das mensalidades forem suficientes para garantir o funcionamento diário, o Exército não questionará a sua existência e fará a gestão dos restantes recursos em conformidade, ainda que tratando, de maneira semelhante, o que é distinto. Quanto às direções, fazendo o que podem com os recursos disponíveis e as diretrizes superiores, parecem vir deixando cair alguns “diferenciadores positivos”, como o investimento no internato e na instrução de matriz militar, para se focar nos rankings e na melhoria das médias classificativas dos alunos o que, na minha opinião, se resume à espuma dos dias. Os encarregados de educação, na sua maioria, acompanham essa preocupação com a média final do seu educando, mais do que com a preparação de um cidadão mais completo, em que as vertentes intelectuais, físicas e morais têm o mesmo peso e relevância. De todos os elementos que referi, com responsabilidades nos estabelecimentos militares de ensino, são os alunos que mais fazem, sentem e incentivam a diferenciação positiva. Na sua maioria, sentem orgulho de pertencer a estas duas instituições e demonstram-no em todas as circunstâncias.

Do referido e apontando para o futuro, deixo o que considero serem alguns caminhos possíveis. Do Estado, espera-se a atribuição de mais autonomia pedagógica, para que seja possível verter, nos seus projetos educativos, de forma inequívoca, a missão e os valores acima descritos. Também se espera mais autonomia administrativa que permita a estas escolas contratar os professores com perfil adequado ao quadro de valores anunciado. Ao Exército, pede-se que coloque, nos quadros destas Escolas, os militares que possuam mais sensibilidade pedagógica, não os penalizando, posteriormente, no decorrer das suas carreiras. Às direções pede-se, ainda, que invistam nos fatores diferenciadores, tais como o internato, a instrução de matriz militar, a inclusão, o encorajamento das tradições e o aprofundamento dos valores. Aos encarregados de educação, solicita-se compreensão relativa a um possível aumento do valor das mensalidades, a equacionar o internato como o modelo de frequência que mais rapida e profundamente permite a aquisição dos valores distintivos destas escolas, no sentido de que os seus filhos, em detrimento de classificações mais elevadas, tenham uma formação abrangente do ponto de vista intelectual, físico e moral, mais rica nos campos da ética e da liderança. Aos alunos exige-se que continuem a ser, “somente” e com garbo, “Meninos da Luz” e “Pilões”.

Em conclusão, e de uma forma muito pessoal, considero que Portugal ganha com a existência destes estabelecimentos de ensino. Merecem ser acarinhados e apoiados, não só pelas questões acima abordadas, mas visando o quadro mais alargado da preparação das Forças Armadas para novos quadros de intervenção, mais complexos e mais exigentes, a todos os níveis. O infeliz acontecimento da guerra, neste momento, coloca a relevância destas escolas num patamar de importância ainda maior. Não podem ser descartadas de um plano mais alargado de formação de possíveis quadros militares, capazes de responder aos reptos que o mundo atual enfrenta.

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