www.jn.ptjn.pt - 3 jul. 01:00

Prózis ou pró-vida, venha o Diabo e pró-escolha

Prózis ou pró-vida, venha o Diabo e pró-escolha

Os Estados Unidos, os mesmos que defendem o direito constitucional de qualquer pessoa poder adquirir armas, revogam agora direitos das mulheres -...quer-me parecer que a estratégia americana para combater fundamentalistas islâmicos é afinal começar a fazer-lhes concorrência. Aliás, ficam a saber que nas próximas eleições, em vez de governadores, os americanos vão ser convidados a escolher o seu ayatollah.

Como sabemos, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos reverteu a decisão que protegia o direito ao aborto no país e o tema da interrupção voluntária da gravidez voltou à ordem do dia. Houve estados, como o Alabama, que estavam com tanto entusiasmo de se mostrarem pró-vida que, assim que foi anunciada a decisão, decretaram que quem for apanhado a realizar abortos enfrentará a prisão perpétua. Mesmo para mostrar quem é que é fã da vida humana, com toda a dignidade e oportunidade que ela merece. É curioso reparar que os estados mais entusiasmados com a revogação dos direitos das mulheres ao seu próprio corpo sejam praticamente os mesmos que na altura do uso obrigatório de máscara se manifestaram contra esta lei, empunhando cartazes com "o meu corpo, as minhas regras". Pode ser que não os tenham mandado fora e os possam emprestar agora aos largos milhares de pessoas que se têm reunido à porta do Supremo Tribunal para lutar contra esta decisão. É interessante perceber que muitas pessoas que se assumem pró-vida são as primeiras a considerar que se pagam muitos subsídios e apoios aos menos favorecidos. Estas também são as que argumentam com o caso da dona Dolores, que diz que pensou em abortar a gravidez do Cristiano Ronaldo, como quem diz "hoje não teríamos um jogador de futebol muito bom". Por alguma razão nunca partilham imagens da dona Klara Hitler.

Mesmo com a maior das boas vontades, é realmente difícil não achar que este tipo de situações não são um atentado dirigido a mulheres, que são assim resumidas a incubadoras.

Porque em matérias de gravidezes não desejadas poderia sugerir-se aos homens fazerem vasectomias, por exemplo. Um procedimento médico relativamente simples e reversível, mas por alguma razão, as tentativas de tentar controlar o corpo masculino são mais difíceis de pegar. Já na toma da pílula é o que é. São as mulheres que desde cedo são incentivadas a meter dentro de si bombas hormonais com inúmeros efeitos secundários. Pena daqueles cientistas que andaram anos a estudar para desenvolver a pílula masculina e que até hoje só venderam sete caixas, sendo que metade foram uns tipos ao engano que quando leram "Man Pill" acharam que era para aumentar o pénis. Aliás, mesmo com preservativos, segundo muitos homens, parece que nunca nenhuma das centenas de marcas que existem no mercado acertou no número deles. Nunca. Seja o S, o M, o L, o XL, o XXL, estão sempre apertados e é desconfortável. As marcas de preservativos deviam pedir ajuda à Nike, que tem o 38, o 38,5, o 39. Para além de controlar a vida e a sexualidade das mulheres, esta reversão é mais perversa porque atinge acima de tudo mulheres pobres. É que os abortos vão sempre acontecer, a diferença são as condições em que serão realizados. Uma mulher com possibilidades financeiras pode ir para um sítio onde seja possível realizar a interrupção, uma mulher pobre no máximo vai até ao Aki para comprar um ancinho e um alicate. Portugal, sendo um país onde o aborto é despenalizado, poderia dar outra vida àquele ditado que diz "com o mal dos outros posso eu bem porque até tenho um alojamento local a walking distance da maternidade Alfredo da Costa". Já imagino as campanhas do turismo de Portugal com o slogan "tire-o para fora, cá dentro".

Mas este debate foi bom, porque em Portugal, por exemplo, a última vez que se tinha debatido este assunto foi em 2007. Nessa altura, as opiniões que foram ouvidas foram as de médicos e especialistas, subtraindo do debate público outras referências nacionais como Miguel Milhão, o fundador da Prozis, que fez notícia esta semana pelas suas declarações a favor da criminalização do aborto. Pode não ter um grande currículo que valorize a sua opinião, mas se há pessoa que percebe do assunto de ter coisas estranhas na barriga, que até podem fazer mal, é o CEO de uma marca de suplementação desportiva.

Não sei quanto a vocês, mas eu não conhecia o Miguel, só conhecia a marca pela quantidade de pessoas famosas que têm um código de desconto nos seus produtos. Eu nunca adquiri nada porque suspeito sempre de uma coisa que está constantemente em promoção. Quando passo no corredor da carne e tem lá sempre umas coxas de frango com uma etiqueta de descontos, eu não arrisco porque da última vez que comprei, fiquei uma semana na casa de banho. Numa entrevista a si próprio, o Miguel demonstrou que é uma pessoa razoável que dialogou com mulheres para as ouvir. E a prova disso é que o Miguel partilhou a conversa que teve com a sua mulher sobre a eventualidade de ela engravidar após um crime sexual e sobre o que devia ser feito depois: "Já falei com a minha mulher sobre isso, mas não me lembro do que ela disse". Pronto. Mas se calhar também não é importante. É mais uma opinião de uma mulher que conta pouco para este tema. Até porque o Miguel, futuro candidato ao prémio padrasto do ano, afirmou que tomaria conta da criança. Faz sentido. Provavelmente, a mulher estaria tão traumatizada que não iria aguentar aquelas perguntas clássicas de "estas orelhas são do pai ou da mãe?". Acrescentou ainda: "Não consigo sacrificar um inocente pelos crimes de um criminoso. Não consigo fazer essa cena". Cena. A Prozis, além de prometer um corpo jovem, também faz com que o CEO de quase 40 anos fale como um miúdo de 16. É pena que o inocente que o Miguel não quer sacrificar seja um feto e não uma mulher feita. No entanto, quando vi o boicote que fizeram à Prozis, dei por mim a concordar com este raciocínio: não é por causa do Miguel que devemos interromper o ciclo de vida dos produtos. A manteiga de amendoim não tem culpa dos erros cometidos pelo pai da marca.

*Humorista

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