visao.sapo.ptrantunes - 2 jul. 13:20

Visão | Os médicos do SNS

Visão | Os médicos do SNS

A médica assistente hospitalar Vera Rodrigues Bernardino traça um quadro sombrio para os médicos que trabalham no SNS e pede condições para os que se recusam a desistir em favor do privado

Na minha geração, alguns de nós fomos para Medicina influenciados por séries televisivas, como o ER ou a Anatomia de Grey. Mas a realidade é muito menos charmosa. Não somos herdeiros de grandes fortunas e os que, dentre nós, (ainda) estão no SNS, nunca irão enriquecer.

Os médicos são constantemente alvo de críticas e acusações, muito fruto de casos isolados, empolados e generalizados injustamente. Em alturas de crise no SNS, chovem na comunicação social casos de negligência e má prática, alguns até decorridos há anos atrás. Na opinião pública, somos todos ricos, arrogantes e pertencemos a uma classe intocável, altamente privilegiada. Somos uns interesseiros: queremos sair cedo para ir ganhar dinheiro na privada, fazer o mínimo possível no SNS e, se possível, passear à custa da indústria farmacêutica. Não nos preocupamos nem respeitamos os doentes: desmarcamos consultas, engonhamos no serviço de urgência, estamos sempre de férias, não atendemos telefones, não falamos com os familiares. É só continuar. Se as parangonas nos crucificam, os comentários em fóruns e redes sociais atiram-nos directamente para a fogueira.

Mas então vamos lá, por partes. Algures no secundário alimentamos o sonho romântico da Medicina, perdemos tempo a estudar até termos notas entre 18 e 20, e, à primeira ou ao fim de anos de tentativas, lá entramos para a faculdade. Durante 6 anos, estudamos que nem desalmados para compreender e decorar calhamaços – na minha altura, ainda só se estudava por livros. Propina máxima – alguns dos meus colegas ainda estão a pagar o empréstimo bancário. Nos últimos 3 anos do curso, estagiamos em hospitais e centros de saúde, sendo o último ano profissionalizante – já trabalhamos como médicos, sem autonomia e sem remuneração.

Acabada a faculdade, temos o chamado Ano Comum – é como se fosse um ano zero da especialidade. Os internos passam por vários serviços e integram as equipas médicas, com funções atribuídas. Salário: €1566,42 (bruto); valor/hora: €11,18 (bruto). Estamos a falar de jovens com mais de 24 anos.

Depois vem o internato, ou seja, a formação específica para a Especialidade. Pode ocorrer em hospitais públicos ou privados, mas a remuneração é a mesma. Trata-se de um período que varia entre 4 e 6 anos. Salário bruto: entre €1835,42 e €1937,39; valor/hora: €10,59 a €11,1.

Para além do trabalho de enfermaria, consultas, urgências, cirurgias, técnicas – consoante a especialidade -, há avaliações anuais. São exames formais. É obrigatório o balanço estatístico da actividade desenvolvida e a produção científica: temos de realizar cursos para complementar a nossa aprendizagem, fazer e apresentar trabalhos em congressos, escrever e publicar artigos em revistas creditadas. Por vezes, há apoio da indústria farmacêutica, é verdade, mas muitas vezes não há e temos de ser nós a pagar: inscrições em congressos sempre acima dos €400 (mais deslocações e alojamento), cursos acima dos €300, publicações custam tipicamente bem mais de €300. Cursos, pós-graduações, mestrados, doutoramentos – sem bolsas. Ah, e claro que o tempo para estudar, investigação e preparar trabalhos não está contemplado no horário. Já vamos às horas extraordinárias.

Fazemos o exame de final de internato e passamos a ser especialistas. No meu caso, Assistente Hospitalar – SNS: salário bruto: €2746,24. O valor/hora ronda os €15,84 (bruto), €9,27 (líquido). Passamos a ter mais cargos: chefiamos equipas nos serviços de urgência, orientamos cirurgias, gerimos enfermarias e cuidados domiciliários, formamos e supervisionamos internos, coordenamos consultas e hospitais de dia. E temos de manter, simultaneamente, a nossa formação – todos os dias há novas moléculas, fármacos e técnicas a serem divulgadas, acreditem que a actualização é difícil -, mais o restante trabalho. Por esta altura, andamos a rondar os 30 e poucos anos.

Se houver concursos para progressão da carreira médica, ao fim de 5 anos – normalmente temos de esperar mais tempo – fazemos novamente exame para passar à fase seguinte: Assistente Graduado. Salário bruto: €3248,27; valor por hora: €18,74 €. Responsabilidade e cargos cumulativos – não há limite para as funções exercidas. A grande maioria de nós fica estagnada nesta fase, já que são mínimas as vagas que surgem para a etapa seguinte: Assistente Graduado Sénior – os antigos “chefes de serviço”. Portanto, antes dos 40 anos ficamos com a mesma categoria (e salário) para o resto da vida.

Agora, as horas extra. Só são reconhecidas e pagas as horas extra em contexto de urgência que surgirem nas escalas, em períodos previamente designados. Se ficarmos mais tempo no serviço, para lá do horário, esse dinheiro não nos é pago. À hora da saída, não deixamos cirurgias a meio, as consultas demoram o tempo necessário para cada doente, tentamos dar as altas nos serviços e deixar os doentes das enfermarias estabilizados. Portanto, na realidade, não temos hora de saída. E nada disto é contabilizado. Nalguns hospitais, há a possibilidade de criar uma “bolsa de horas”, que não é paga, e raramente se conseguem gozar estas horas. Tal como as folgas, já que as equipas estão sempre desfalcadas. Falo de folgas, porque temos direito a elas, por lei, quando fazemos turnos de fins-de-semana e feriados. Se me atrasar um minuto, sim, um minuto, descontam-me no pagamento. Os valores/horas são pagos até – até! – 150% da hora, mas os valores divulgados correspondem aos de uma minoria de médicos mais velhos, com uma tabela remuneratória antiga, que raramente fazem horas extras. Que sonho.

Andar há 12 + 6 + 1+ 5 + 5 anos (e mais qualquer coisa) a estudar para isto. Agora, os luxos: a maioria de nós passa entre 6 a 10 noites fora de casa por mês, a trabalhar em contexto de urgência. Não sabemos o que são meses com todos os fins-de-semana livres. E pior: a partir das 12 horas de trabalho seguidas, não temos qualquer cobertura jurídica pela entidade patronal ou por seguros profissionais. Ou seja, se algo correr mal, cometermos erros ou tivermos um acidente, com algum tipo de processo judicial acrescido, estamos por nossa conta. Quem nos mandou trabalhar em demasia?! Fazer 16 ou 24h seguidas?! E às vezes até mais. Há pressões hierárquicas constantes para tapar buracos nas escalas, fazer turnos com mais de 12 horas, fins-de-semana seguidos. E vamos cedendo, por amor à camisola, alertando para a insustentabilidade e riscos para os doentes e para os próprios profissionais – as tais escusas de responsabilidade. Esticamos a nossa resistência ao máximo e somos responsabilizados quando há falhas. Na nossa profissão, não temos limite para a acumulação de trabalho, nem ratio médico/doente. E sim, o burnout existe.

Ainda a parte do charme. Somos agredidos física e verbalmente no nosso local de trabalho e nem protecção legal temos. Muitas médicas-grávidas, médicas-mães, médicos-pais não vêem reconhecidos os seus direitos inerentes à maternidade/paternidade. Há falhas graves de material, chegando ao mais elementar, como papel e tinteiro para as impressoras – alguns conselhos de administração “sugerem”, por exemplo, que não se imprimam receitas. Estão a ver idosos a gerir mais de 10 medicamentos apenas por SMS? Temos dilemas éticos constantes: qual o benefício para os doentes se fazemos mais uma cirurgia, mais um exame, mais uma consulta, versus o risco de cometer erros por cansaço? E mais horas não pagas, menos horas para as nossas vidas pessoais?

Não me quero alongar demasiado. Há muito mais questões para abordar. Estamos de rastos e desfalcados, sobretudo depois da pandemia – ainda alguém se lembra que fomos nós, no SNS, a enfrentar o COVID, quando ainda nem se sabia o que aí vinha? O que funcionava mal antes, só piorou. Há desestruturação nos serviços, há falta de condições de trabalho, escassez de recursos humanos e materiais. Pertencemos a uma profissão de desgaste rápido, embora isso não seja reconhecido. Passamos noites sem dormir, com enxaqueca nos dias seguintes, privação de sono, exaustão. E, no fundo, nunca deixamos de ser médicos. O trabalho não acaba quando despimos a bata. Levamos os doentes para casa. Vivemos preocupados com situações clínicas difíceis, temos de estudar os casos, analisar o nosso próprio trabalho.

Recebemos e-mails e telefonemas fora de horas a pedir ajuda e a resolução de coisas urgentes. Os médicos pertencem à classe média, desengane-se quem pensa o contrário. Temos dívidas como toda a gente, fazemos contas ao fim do mês. Ninguém enriquece no SNS. Aliás, quem está no SNS, e à luz da actual inflação, está a perder dinheiro, comparativamente ao que é pago nos privados. Os que dentre nós conseguem algum tipo de biscate, fazem-nos para lá do seu horário de 40 horas – ao contrário da maioria dos funcionários públicos, que têm horários de 35 horas semanais.

E também temos família. As férias acompanham os períodos lectivos, gostamos de celebrar o Natal e as restantes festas todos juntos. E ainda gostávamos de ter tempo (e dinheiro) para viagens, cultura, desporto, casa, carro. Não deixamos de ser pessoas normais. Parem de atacar e perseguir os que (ainda) ficamos. A grande maioria de nós dedica-se mesmo ao trabalho no SNS. Mantemos serviços a funcionar graças às horas não pagas, desenvolvemos técnicas inovadoras em diagnóstico e tratamento, criamos serviços de referência reconhecidos internacionalmente, conseguimos fazer descobertas e estudos incríveis. As acusações e ataques constantes desmoralizam-nos. Não há resiliência que aguente.

Não somos nós que estamos a destruir o SNS. Não queremos aumentos nas horas extraordinárias. Queremos salários condignos e condições de trabalho. É preciso falar com quem está no terreno, integrar os profissionais nos planos de reestruturação dos serviços, permitir modelos de gestão e responsabilidade integrada que sejam funcionais e autónomos.

Só assim se conseguem manter profissionais motivados, experientes, actualizados cientificamente e capazes de exercer as suas funções o melhor que sabem. Queremos ser parte da solução. Ficar no SNS é uma escolha minha e defendo-o com convicção. Mas temos de o manter modernizado e adaptado à realidade, criando condições para assegurar os profissionais de excelência que formamos. Queremos que os utentes tenham acesso ao melhor SNS, não apenas ao SNS possível. Temos de defendê-lo e repensá-lo todos juntos.

Nota: a autora escreve segundo o Acordo Ortográfico antigo

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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