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A liberdade de expressão, a dignidade humana e a democracia

A liberdade de expressão, a dignidade humana e a democracia

A restrição da liberdade de expressão pode ser uma arma poderosa dos governos para manter o poder e oprimir o povo. Tiago Neves foi o vencedor do concurso de ensaios do +Liberdade.

Desde o nascimento, o ser humano é dotado da sua dignidade alienável, isto é, um conjunto de direitos inerentes a todos os homens ou mulheres, independentemente das suas crenças, culturas, religiões, antepassados, da sua utilidade… Não podem ser revogados, sendo universais. Garantem valor do indivíduo e são a base para ele perseguir os seus interesses e ambições autonomamente. A liberdade, nas suas diferentes vertentes, constitui, assim, um dos direitos fundamentais ao ser humano.

A liberdade de expressão, no entanto, é a base para as restantes e a restrição desta aponta para retrocessos civilizacionais. Esta garante diversas liberdades essenciais para o funcionamento da sociedade, tal como a liberdade de associação, de religião, de distribuição, de publicação, de imprensa… Nos anais da história, a liberdade foi o direito mais procurado. A procura por este ideal levou, ao longo da história humana, a inúmeros progressos sociais, culturais, tecnológicos e económicos. Porém, com o progresso da sociedade e a sua aparente evolução, mais problemas têm sido associados à livre circulação de pensamentos e a sua expressão, nascendo, assim, um problema: Há limites à liberdade de expressão e quais são as suas consequências?

De facto, existe uma corrente ideológica que considera que a liberdade de expressão tem promovido o ódio, a desinformação e, no geral, a fragmentação da sociedade. Consideram, portanto, que a liberdade de expressão deve ser limitada e proibida nos casos em que ofensas tenham sido cometidas, argumentando que esta é mais perigosa e dolorosa que a violência. No entanto, considero este pensamento falacioso e, sobretudo, perigoso.

A restrição da liberdade nunca pode ser o objetivo de um governo ou cultura que queira prosperar e, especialmente, ser moralmente e eticamente corretos. Numa análise concreta, o que é definido como discurso de ódio? Ou como desinformação? Ou como calúnias? Efetivamente, não se consegue definir, de modo un��nime e maioritário, o que constitui como cada uma destas ofensas, visto que se trata tudo de juízos subjetivos aos códigos éticos e morais de cada pessoa, interpretando cada sujeito de forma diferente os problemas mencionados.

Como se considera todos os homens iguais, estas diferenças éticas, morais e, até mesmo, ideológicas merecem ser respeitadas, não perseguindo uma pessoa por expressar a sua opinião. Face a esta diversidade de pensamento, quem somos nós para decidir o que é válido ou não. Com uma população de 7 biliões de pessoas como seria capaz de nos exprimir sem ofender alguém? Seria impossível. Devido a isso, torna-se inexequível submeter a liberdade de expressão a um código de leis abrangente que satisfaça a população inteira e impeça alguém de ser ofendido, sendo a restrição desta simplesmente uma violação da dignidade do ser humano. Historicamente, nos casos onde houve tentativas de restrição à liberdade de expressão, os direitos fundamentais do homem foram sempre quebrados.

Como se considera todos os homens iguais, estas diferenças éticas, morais e, até mesmo, ideológicas merecem ser respeitadas, não perseguindo uma pessoa por expressar a sua opinião. Face a esta diversidade de pensamento, quem somos nós para decidir o que é válido ou não. Com uma população de 7 biliões de pessoas como seria capaz de nos exprimir sem ofender alguém? Seria impossível.

A título de exemplo, entre o século XIV e XIX, a inquisição perseguia e torturava as pessoas consideradas blasfémias, heréticas ou com costumes consideradas desviantes, sendo os oprimidos obrigados a fugir ou se esconder. Na União Soviética, opositores do regime eram enviados para os gulags por partilharem a “propaganda” e desinformação ocidental. No Estado Novo, o lápis azul bania tudo o que fosse contraditório ao governo salazarista, denominando-o de falsa informação e contra os interesses do país.

Os limites legais devem, por esse motivo, ser definidos com legislação que garante e protege a livre circulação de ideias e pensamentos, garantindo, assim, a manutenção dos direitos fundamentais do ser humano e, impedindo que o Estado possa, posteriormente, definir limites absurdos e sem fundamento sobre o discurso.

No entanto, apesar de provas empíricas que apontam para o erro desta prática, ainda existe pessoas que defendem a abolição da liberdade aquando há o perigo de desinformação ou ofensas a princípios religiosos ou de discurso de ódio. Face a isso, é necessário ter em conta que o progresso só é conseguido se houver este direito.

Diversos direitos ou ensinamentos são hoje considerados como privilégios ou verdades adquiridas porque, no passado, houve pessoas que arriscaram ofender as normas vigentes, sendo denominados como mitomaníacos e depravados, lutaram, garantindo-nos maiores direitos e uma sociedade mais avançada. Por exemplo, o movimento ativista a favor dos direitos dos homossexuais na década de 1960, nos EUA, que eram considerados como depravados e doentes devido às suas preferências sexuais, através do exercício sua liberdade de expressão sem medo de repressão, como protestos e publicação de artigos, consagraram os direitos gays como direitos universais.

É fundamental que, caso haja problemas sobre um tópico, exista um debate livre com argumentos persuasivos, inteligentes e racionais para se chegar a um acordo e, dessa maneira, haver progresso social, cultural e tecnológico. Só se pode ganhar o problema, enfrentando-o, não o ignorando. Encarado com calúnias ou um discurso de ódio que tenha provocado danos à imagem da empresa ou indivíduo, recorre-se ao sistema jurídico e, caso o juiz ache que tenha havido prejuízos, decidirá a favor do defendente. Concretamente, existe limites legais à nossa liberdade.

Semelhantemente, Nicolau Copérnico que, indo contra as diretrizes da igreja, apresentou o modelo heliocêntrico, ofendendo a doutrina religiosa, inovou a forma como vemos o nosso sistema solar e moldou a doutrina para os futuros astrónomos. Os movimentos dos direitos civis alcançaram os seus objetivos sempre usando a liberdade de expressão para expor as suas causas e negar as alegações sobre os mesmos. Na ciência, também, o que anteriormente era considerada como algo prejudicial e incomprovado é, atualmente, considerado como verdade fundamental.

É fundamental que, caso haja problemas sobre um tópico, exista um debate livre com argumentos persuasivos, inteligentes e racionais para se chegar a um acordo e, dessa maneira, haver progresso social, cultural e tecnológico. Só se pode ganhar o problema, enfrentando-o, não o ignorando. Encarado com calúnias ou um discurso de ódio que tenha provocado danos à imagem da empresa ou indivíduo, recorre-se ao sistema jurídico e, caso o juiz ache que tenha havido prejuízos, decidirá a favor do defendente. Concretamente, existe limites legais à nossa liberdade.

Estes limites são estabelecidos quando a nossa liberdade restringe e limita a de outra pessoa. Quando colidem, a liberdade de um tem de ser limitada para preservar a liberdade do outro. Citando Friedman, “A minha liberdade de deslocar o punho tem de ser limitada pela proximidade do seu queixo” [1]. Porém, os limites legais não devem ser iguais aos limites morais. Na nossa sociedade vivemos com um contrato social onde se supõe uma confiança mútua entre a população. Sem confiança, cada uma das partes fica vigilante, temendo que, a qualquer momento, os seus interlocutores a possam trair. Se em cada conversa ou discussão, uma das partes tivesse de levar a outra a tribunal ou para a polícia para a respeitar, a nossa sociedade não funcionaria. Assim, os limites morais estão estabelecidos de uma forma que, caso tentasse haver iguais limites legais, a sociedade seria inoperável e estagnada.

Os órgãos de comunicação social, como são, maioritariamente, empresas privadas, têm, fundamentalmente, o objetivo de lucrar, sendo esperado a partilha de histórias mediáticas que tragam mais visualizações. S��o, por costume, aquelas que envolvem assuntos de interesse geral, tal como política, celebridades, certos crimes e controvérsias… Têm, assim, uma profunda importância para a nossa democracia, servindo, muitas vezes, como uma máquina de escrutínio dos regimes, visto que uma história sobre um escândalo governamental ou uma prática empresarial prejudicial à sociedade irá trazer muitas visualizações, servindo, assim, maioritariamente, o povo. Assim, por costume, a sua censura tem de ser evitada, visto que é um meio para o povo se manter informado.

As redes sociais têm servido um papel extremamente benéfico à liberdade de expressão. O seu anonimato e fácil acesso à informação permite que as pessoas exprimam as suas opiniões sem medo das possíveis repercussões, podendo divulgar informações sobre, por exemplo, governos corruptos ou táticas ilegais de certas empresas de forma anónima e com maior acessibilidade, porém as redes sociais devem-se manter imparciais nas opiniões partilhadas nos seus sites para que não haja censura, recusando seguir as diretivas do governo que pode ter motivos dissimulados. Também permitem maior imparcialidade, visto que, atualmente, os meios de comunicação social são, cada vez mais, dominados por um estrato da população que, por sua vez, poderá tentar impedir a expressão dos mais desfavorecidos pelo sistema.

Os governos têm o papel de garantir o livre acesso à informação e sua livre circulação. Não devem impedir ninguém de se expressar livremente. Informação, nos dias de hoje, é poder e, devido a isso, como contrabalanço, é indispensável a sua livre circulação, visto que, face a possíveis casos de desinformação, é necessário ter toda a informação possível e, usando lógica, argumentação e razão, desmentir esses casos e chegar à verdade factual.

A limitação da liberdade de expressão fragiliza a democracia. A liberdade de expressão é a liberdade basilar, ou seja, é a liberdade necessária para as restantes. As liberdades de imprensa, de associação, de greve, de publicação, de distribuição dependem todas da liberdade de expressão. É a existência desta liberdade elementar que distingue as democracias das sociedades arcaicas e atrasadas.

É necessário, também, ter em conta que o governo no poder fará os possíveis para perpetuar esse poder e, caso haja restrições à liberdade de expressão, há mais facilidade em silenciar os críticos, disfarçando as críticas como desinformação. A restrição da liberdade, por parte do governo, é também falaciosa, invalidando a sua governação. Quando restringe a liberdade de expressão, mesmo com intenções virtuosas, o governo admite que a sua população não tem capacidade de exercer autocensura, ignorar o que os chateia e de assumir as responsabilidades pelos seus atos. Assim, caso restrinja a liberdade de expressão e o Estado adote um lado paternalista, o regime está a admitir que a sua população é incapaz de assumir responsabilidade, tal como crianças ou doentes mentais que, por contraste, não podem votar, invalidando, em parte, a sua legitimidade de governação.

Com efeito, a limitação da liberdade de expressão fragiliza a democracia. A liberdade de expressão é a liberdade basilar, ou seja, é a liberdade necessária para as restantes. As liberdades de imprensa, de associação, de greve, de publicação, de distribuição dependem todas da liberdade de expressão. É a existência desta liberdade elementar que distingue as democracias das sociedades arcaicas e atrasadas.

A democracia baseia-se no princípio do autogoverno da população que, através de representantes políticos, faz as suas próprias decisões políticas. Então, para que a democracia seja eficiente e justa é necessário que haja a livre movimentação de informação e ideias para ajudar a informar a população, mantendo a transparência, e garantir que o governo age segundo as suas promessas. A sua própria existência é um dissuasor à corrupção, e criminalidade, visto que as autoridades e as pessoas têm medo de serem descobertos e a consequente movimentação de informação e opiniões, mantendo, assim, a democracia transparente e honesta.

A presença de liberdade de expressão reprime possíveis tumultos armados e perigosos, visto que permite a população criticar abertamente os problemas da sociedade e de certas medidas governamentais sem medo das repercussões e, assim, ser mais transparente através de protestos pacíficos ou por outros meios, permitindo o progresso. A não existência de liberdade de expressão invalida o conceito de democracia, dado que impede as pessoas de se poderem expressar da sua maneira e, portanto, não podem participar no processo político sem serem coagidas, retirando-lhes a individualidade e a liberdade.

A restrição da liberdade de expressão, apesar de poder ter boas intenções, não apresenta bons resultados, podendo ser uma arma poderosa dos governos para manter o poder e oprimir o povo. Devido à subjetividade adjacente aos problemas como calúnias e discurso de ódio, estes não devem ser restringidos, mas enfrentados para que se possa ultrapassar as barreiras que ainda provocam este tipo de discurso.

Em suma, a liberdade de expressão é essencial para o desenvolvimento da civilização e das nações. Promove o progresso social, cultural e tecnológico e, caso seja restringida, arrisca-se a estagnação e o retrocesso da sociedade.

A restrição da liberdade de expressão, apesar de poder ter boas intenções, não apresenta bons resultados, podendo ser uma arma poderosa dos governos para manter o poder e oprimir o povo. Devido à subjetividade adjacente aos problemas como calúnias e discurso de ódio, estes não devem ser restringidos, mas enfrentados para que se possa ultrapassar as barreiras que ainda provocam este tipo de discurso.

Caso se restrinja a liberdade de expressão em casos de ofensas religiosas e desinformação o que nos separaria das sociedades medievais, onde as pessoas com mentalidades diferentes eram silenciadas, perseguidas e torturadas. Portanto, o Estado deve fornecer boas bases legais para que a liberdade de expressão não seja punida nem restringida, permitindo, assim, a livre circulação de ideias, inovações e informação. Posto isto em causa, a sociedade tem de escolher entre preservar a dignidade alienável do ser humano ou optar pelas restrições à liberdade e a quebra de um dos direitos fundamentais do homem.

[1] Friedman, Milton. Capitalismo e liberdade. Actual editora 2020

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