observador.ptObservador - 7 dez. 00:18

A passageira democracia

A passageira democracia

O populismo, venha ele de onde vier, não é causa da decadência democrática. É sintoma. Prossigam, pois, com este absurdo de elogiar o incendiário e abominar o incêndio. Tem estado a correr lindamente.

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1 Parte da direita portuguesa sofre de um estranho mal: como anda há pelo menos seis anos sem norte, encontrou uma fórmula política (com os sucessos que são conhecidos de todos) no «combate à ditadura socialista». Este combate, porém, é suspenso a 25 de Novembro, efeméride que faz a direita celebrar a conquista da democracia que, a 26 de Novembro, passa a ser novamente ditadura socialista. A direita elegeu, pois, como sua uma data que assinala a forma como o PS se tornou o partido central do regime e como o PCP se tornou o grande dominador das estruturas de poder no Estado e em boa parte da sociedade civil.

E parte da esquerda nacional sofre de uma outra enfermidade: consegue sempre vislumbrar ameaças às democracias de outros países, do Brasil à Hungria, dos Estados Unidos a Espanha, sendo totalmente incapaz de encontrar na democracia portuguesa (ou nos regimes de países que apadrinha, como a Venezuela, Angola ou a China) qualquer sinal de imperfeição. Portugal é, afinal, um paraíso das liberdades e do progresso, o que faz com que quem coloque isso em causa seja, naturalmente, fascista, populista, reacionário ou neoliberal, podendo mesmo reunir todas as características.

A defesa da democracia e do seu aperfeiçoamento passa desta forma ao lado do que devia ser um debate com mais consensos do que divergências. Não bastando a nossa raiz cultural, o facto de vivermos numa terra estruturalmente endogâmica, em que as elites se reproduzem e vivem em circuito quase fechado, temos ainda contra a consolidação democrática um debate político que se faz em redor de maniqueísmos e preconceitos ideológicos.

O relatório do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Social (International IDEA) mede o desempenho democrático de 158 países desde 1975, procura fornecer um diagnóstico sobre o estado das democracias em todo o mundo e anunciou, no final do mês passado, que o mundo se está a tornar mais autoritário e que os governos democráticos são quem está a levar a cabo esse retrocesso, recorrendo a práticas repressivas e enfraquecendo o Estado de Direito. Sobre a democracia portuguesa, diz o relatório que sofreu um retrocesso em áreas sensíveis: a independência judicial, ausência de corrupção e igualdade perante a lei. É o único país da Europa Ocidental que regista uma queda em três parâmetros de avaliação.

Em Fevereiro deste ano era notícia que, de acordo com o Democracy Index 2020, Portugal voltara a ser uma «democracia com falhas». Num artigo publicado no Expresso, em Maio deste ano, Miguel Poiares Maduro alertou para estes sinais, mencionando também, e sobretudo, um relatório sobre a democracia a nível global que, analisando 202 países, considerava que Portugal já não seria uma democracia liberal, mas uma democracia meramente eleitoral. Estamos, portanto, ao nível da Polónia, da República Checa ou da Eslováquia: regimes que não cumprem os requisitos do Estado de Direito, que apresentam um défice de mecanismos de escrutínio, de separação de poderes e de protecção das liberdades dos cidadãos.

Naturalmente, as medidas de guerra tomadas para fazer face a uma pandemia provocada por um vírus respiratório (que é responsável pela morte, até agora, de 1,9% do total de infectados conhecidos, e de 0,06% da população mundial) nada terão que ver com este retrocesso. A culpa será obviamente do vírus propriamente dito, porque se há coisa que temos aprendido nestes últimos 20 meses é que não há outro responsável pela devastação social, económica, sanitária, financeira e mental que o mundo tem sofrido. Interessa, para o caso, muito pouco que este caminho concreto de degradação institucional não tenha começado com a pandemia, porque agora há um elemento em que se podem depositar todas as responsabilidades: se as democracias regridem, foi porque teve mesmo de ser e não porque foram os próprios e autoproclamados democratas que deram os primeiros passos no sentido dessa regressão já antes da pandemia e, ainda, porque resolveram eles mesmos responder à doença como se responderia a uma invasão de extraterrestres. E isso teve, como tem tido ao longo dos últimos anos, a conivência da sociedade inteira. A começar pelos partidos.

2 Passou ao lado da maioria dos portugueses, na medida em que a comunicação social, sobretudo a televisão, lhe dedicou pouca ou mesmo nenhuma atenção, mas a eleição do líder do PS este ano, à semelhança da anterior, não teve apenas um candidato. Daniel Adrião, militante socialista como tantos outros, quis fazer valer as suas ideias no partido em que milita e o país talvez tenha perdido por não lhe ter prestado a atenção que merecia. Na moção que levou ao congresso do PS, Adrião propôs que o partido procurasse a realização de uma «democracia plena», expressão que dava também título ao documento.

Nele reivindicava essa democracia plena para o PS e para o país: «uma democracia de homens e mulheres livres, que exercem em toda a plenitude os seus direitos de cidadania, e que não estão condicionados, nem coagidos no exercício das suas liberdades fundamentais, designadamente na sua liberdade de pensamento, de opinião e de associação, nem por restrições formais, nem por quaisquer outras formas de pressão de natureza política, pessoal ou profissional.» Daniel Adrião, no texto da moção, deixa antever os problemas que identifica em Portugal e no PS (e, na verdade, na generalidade dos partidos, sobretudo nos de maior dimensão), propondo que se comece a viver «num país onde existe um sistema robusto de “checks and balances”, onde os governos funcionam de forma transparente e escrutinável, onde há uma efectiva separação dos aparelhos partidários e o aparelho do Estado, onde é respeitada a separação de poderes, onde existe um sistema judicial independente e não permeável às pressões do poder político, económico ou outro, onde os órgãos de comunicação social são livres e independentes e onde os cidadãos podem escolher os seus representantes de forma directa e nominal e não através de listas fechadas e bloqueadas, impostas aos eleitores pelos directórios partidários.»

Para concretizar as suas ideias, Adrião avançou com uma proposta: que o líder do partido não pudesse ser primeiro-ministro, o que garantiria a independência das estruturas partidárias para exercer o seu papel de fiscalizador do Governo, ainda que o apoiasse, e deixasse assim de ser uma mera agremiação (salvo raras e assinaláveis excepções) de bajuladores e dependentes das migalhas do poder.

A proposta, bem como o texto integral da moção (que vale a pena ler), não teve impacto público. Não gerou qualquer discussão interna, pelo menos que se conheça. Nenhum dos outros partidos teve sequer interesse em discutir uma ideia deste género. Daniel Adrião conheceu, de forma não inédita, o que se faz na imprensa e no interior dos partidos a quem, para usar uma expressão para aí em voga, pensa fora da caixa: o desprezo ou, pior, um gozo tímido vindo dos corredores do poder – do parlamento aos morgados dos aparelhos partidários, passando pela comunicação social, que nesta matéria não é inocente.

3 No programa Sexta às 9, da RTP, emitido no passado dia 26 de Novembro, foi abordado o problema dos limites ao exercício da liberdade de imprensa, nomeadamente no que diz respeito ao acesso a documentos administrativos. Será, porventura, uma questão que muitos olharão com desconfiança, na medida em que Portugal é, afinal, o 9.º melhor classificado no Índice Mundial da Liberdade de Imprensa de 2021 elaborado pelos Repórteres sem Fronteiras. Não me custará reconhecer que não vivemos em ambiente ditatorial no que diz respeito à liberdade de imprensa e informação. Mas talvez a questão seja mais profunda do que parece. No programa da jornalista Sandra Felgueiras, o presidente do Sindicato dos Jornalistas, Luís Filipe Simões, afirma que existe auto-censura na classe, na medida em que os jornalistas sabem, por exemplo, que t��m o direito de aceder a documentação administrativa e não o usam nem reivindicam. Refere ainda que a pandemia serviu para que os poderes públicos tivessem recorrido «a alguma censura» ao trabalho dos jornalistas, e apela ao dever de denúncia.

O jornalista José António Cerejo é ainda mais claro quando afirma que existe uma preocupação maior em ouvir aquilo que os políticos querem dizer do que em perguntar aquilo que os políticos não querem dizer. Arrisco dizer que não me espanta que seja este um princípio generalizado, embora deva ser justo, inclusive para os jornalistas desta casa: há várias e louváveis excepções e em várias redacções; há, felizmente, muitos jornalistas, em vários órgãos de comunicação social, que cumprem o seu papel com zelo, competência, dignidade, seriedade e pertinência. A quantidade de casos que tiveram consequências jurídicas graças ao trabalho dos jornalistas demonstra-o e será injusto não o reconhecer.

Mas não será também estranho que se afirme que há entre nós qualquer coisa de paradoxal no que a esta matéria diz respeito: um certo tipo de jornalismo, ou de liderança jornalística, que prefere coabitar com o poder a questioná-lo. A forma como nos últimos anos se tem assistido a episódios de sonegação de informação, de incumprimento da lei de acesso a documentos administrativos, a condenações do Estado português no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por violações à liberdade de informação, a membros do Governo que se referem a linhas editoriais de aberto confronto com o poder como sendo casos de «jornalismo travestido», «estrume» ou o mais concreto «jornalismo à Correio da Manhã», ou ainda a casos como os da famosa lista de jornalistas alegadamente avençados do grupo Espírito Santo que nunca foi tornada pública, acabando até na forma despudorada como o próprio programa Sexta às 9 foi cancelado pela RTP depois de a sua responsável ter anunciado a sua saída do canal, podem ajudar a explicar o paradoxo: a liberdade de imprensa e de informação não é um problema entre nós porque existe uma certa tendência para não questionar as estruturas do poder, dando-se maior foco a pequenos casos esporádicos e muitas vezes irrelevantes que nos dão a ilusão do escrutínio, mas que na verdade não atingem a jugular do poder, quando não se opta mesmo por servir exclusivamente de mero objecto de reprodução da propaganda dos Governos ou deste ou daquele partido. E ainda, por outro lado, uma tendência recente que se vai notando no crescimento da ideia do «jornalismo de causas» que, por sua vez, vai deixando para trás o jornalismo enquanto profissão que procura a verdade e que confronta o poder. Não espero, pessoalmente, que os jornalistas (que ninguém, na verdade) tenha a ambição de salvar ou sequer mudar o mundo; espero deles apenas um dos últimos redutos do exercício das liberdades. É quanto deveria bastar, e já não é coisa pouca.

4 O agora ex-ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, seguia num carro do Estado, conduzido por um motorista ao seu serviço e sob a sua direcção e ordens, que por sua vez atropelou mortalmente um cidadão português. No local do acidente ficou o motorista, segundo consta, naturalmente transtornado com o que sucedera. O ministro não. Desde então, insinuaram-se, do próprio ministro à GNR, várias coisas: que o trabalhador, antes do atropelamento, tinha atravessado a auto-estrada; que o trabalhador estaria a fazer as suas necessidades em local inapropriado; a tentativa de aproveitamento político por parte da oposição. Cabrita lançou a tese da cabala, atirou para o Estado de Direito, invocou a sua inocência por se tratar de um mero passageiro como se estivesse no 706 para o Cais do Sodré, e faltou-lhe apenas citar Chico Buarque e cantar «morreu na contramão atrapalhando o tráfego». Por fim e quando já se contam os dias para as eleições, lá explicou que só saía, não por decência ou vergonha, mas para não prejudicar o Partido Socialista, no único momento de honestidade que teve em longos meses.

Para o seu lugar, foi indicada a ministra da Justiça. Não é que faça grande diferença, nesta fase até podiam ter feito tomar posse aquele padeiro socialista que foi promovido por Eduardo Cabrita a técnico especialista em protecção civil e que esteve para aí metido numa história de adjudicações de umas golas anti-fumo que afinal pegavam fogo. Mas António Costa, depois de ter dito há uns meses que Portugal tinha um «excelente ministro da Administração Interna» (mesmo já depois de uma outra morte às mãos de um organismo também tutelado por Eduardo Cabrita), ofereceu a tarefa a outra a Francisca Van Dunem, que por sua vez deixa ao país quatro momentos a recordar da sua experiência governativa: a escandalosa nomeação do procurador europeu; o facto de ter tomado posse como conselheira do Supremo Tribunal de Justiça quando já era ministra; o de ter aumentado os tectos salariais para o exercício da função que ocupará quando sair do Governo; e, agora sem ironia, a elaboração de um pacote anti-corrupção, com uma série de propostas muito interessantes e inovadoras, algumas das quais já chumbadas graças ao empenho do PSD (que faz não poucas vezes o favor de nos lembrar que já tanto dá que as eleições sejam ganhas por este ou por aquele), mas que, como dizia o ex-ministro socialista João Cravinho no referido Sexta às 9, provavelmente ficará na gaveta na sua generalizada.

O que resta de tudo isto é uma convicção partilhada por praticamente toda a gente: o que interessava era que António Costa não tivesse uma pedra no sapatinho eleitoral. Não é que lhe faltem pedras no sapato. Mas sem Cabrita, parece que já ninguém se lembra do chorrilho de asneiras praticadas pelo Governo ao longo dos últimos 6 anos, dos episódios de compadrio, de nepotismo, de conflitos de interesses – já para não falar da inexistência de um projecto político claro de alternativa, que beneficia tudo isto. Cabrita está fora, logo o caminho está aberto para a vitória eleitoral. Alguém, no meio disto, acabará por vir a público gabar a genialidade de António Costa, a sua astúcia de príncipe da política, como quem elogia o menino que parte janelas e nunca é apanhado. Enquanto isso, a abstenção lá se manterá em valores que denunciam um cansaço extremo de tudo isto, e constitui uma panela de pressão social prestes a rebentar, a direita de André Ventura chegará a dígitos que impressionarão toda a gente e, arrisco aqui dizer, o PS vencerá, apenas por apatia e falta de melhor alternativa, as eleições. Caso tudo isto aconteça a 30 de Janeiro, no dia seguinte o país dito inteligente estará, provavelmente e ao mesmo tempo, a bajular António Costa e a alertar para o perigo do crescimento dos populismos. Porque continuarão a ignorar o óbvio: o populismo, venha ele de onde vier, não é causa da decadência democrática. É sintoma. Prossigam, pois, com este absurdo de elogiar o incendiário e abominar o incêndio. Tem estado a correr lindamente.

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