Clara Cardoso - 6 dez. 09:09
Visão | O sistema está em baixo
Visão | O sistema está em baixo
A saga de Henrique Costa Santos numa interminável fila para um Loja do Cidadão, numa madrugada de dezembro em que "a internet" foi abaixo
Cinco para as nove na fila para a Loja do Cidadão. À porta, entrincheiram-se pessoas com ar de quem mataria por uma senha, ainda o balcão não abriu. A atmosfera é tensa: ninguém quer estar ali, todos têm de estar ali, só alguns resolverão o seu problema – aleatoriamente, como manda a lei universal da burocracia. Os jovens dão atenção aos auriculares sem fios, as mães fazem scroll no telemóvel com o dedo indicador – como só as mães sabem fazer -, os senhores de idade levam jornal e calçado confortável. As madrugadas em dezembro não inspiram à roupa leve. Abre-se a porta, a fila desperta. Ouvem-se rumores de que o sistema está em baixo.
“É o costume” – lamenta uma senhora na fila, com idade para já ter renovado vinte vezes o documento de identificação. Não sei se por vício, se por défice de sono, interpretei automaticamente a notícia de que o sistema estaria em baixo como profecia da maior abrangência social e política. O sistema está em baixo? Pensei na reinvestida pandémica, na dissolução do parlamento, na exaustão moral, na batalha da ciência contra as variantes, da solidariedade contra os interesses privados, pensei na ignorância, na discriminação sistémica, na crise climática. Mas não. Em todos os serviços de atendimento da administração pública, de Chaves a Vila Real de Santo António, há uma senhora bravia – normalmente é uma senhora -, informalmente destacada para vir à porta dar más notícias à fila. Não lhe cobiço o ofício, gabo-lhe o estofo. E essa senhora veio à porta dizer que “era a Internet”. “A Internet” não estava a funcionar, era uma situação nacional, sabem como é que é a Internet, tem destas coisas, não sabemos se e quando vamos poder atender-vos, caros cidadãos. Toda a fila se revoltou brandamente. A senhora respondeu às questões com insolência, mas metade já não ouviu. Acordados desde as seis, com o carro a pagar parquímetro, bebés ao colo, um frio de rachar e meio dia de trabalho perdido para pedir uma declaração, prostraram-se, repetindo maquinalmente “É a Internet, foi a Internet”.
O atendimento nos serviços da administração pública em Portugal é anacrónico. Parece um sistema fossilizado na era do Windows 95, incapaz de responder à complexidade da burocracia que instala e reproduz. A sensação é a de que o rigor exigido aos cidadãos, os prazos impostos, a implacabilidade das multas quando um papelinho está fora do sítio não são espelhados pelo Estado na gestão dos processos burocráticos. Há falhas, incompetência, atrasos, enganos, mas a relação de poder desigual faz com que o problema seja sempre nosso. A pessoa do outro lado do guichê nos serviços, nos registos, nas finanças, na segurança social, raramente parece preocupar-se muito com os problemas das pessoas, não percebendo que tem a sua vida nas mãos. Será decerto um problema de investimento público, liderança, formação, competência, mas o resultado é incomportável. A própria ideia de que é possível, em 2021, justificar com “a Internet” um problema diário, sistémico, de investimento e competência na administração pública é a evidência de que até as desculpas esfarrapadas pedem modernização urgente.
Passou mais uma hora de plantão à espera de notícias, nem uma senha entregue. Algumas pessoas desmobilizaram, outras desabafam ao telefone, pedindo desculpa aos patrões, à família, por não saber quando e se sairiam dali com o problema encaminhado – uma situação sobre a qual não tinham a mínima responsabilidade. Pior: todos agiam como se fosse normal. Tratar destas coisas é chato, papeladas e tal, já se sabe que é assim. Raro é o cidadão que não tenha uma história tenebrosa para contar, um labirinto burocrático em que foi minotauro, mas achamos normal. E, por isso, nada muda. Em 2021, achamos normal perdermos um dia para, com sorte, se Deus e a Internet quiserem, tratarmos de um papel que não nos diz nada, mas que nos exigem para podermos habitar, trabalhar, votar, existir. O sistema está, de facto, em baixo.
Mas a brandura lusa ajuda sempre. Quando já ninguém acreditava, a vinda da afoita senhora cá fora anunciou a retoma das engrenagens. “O sistema voltou!”. Os ilustres cidadãos seriam finalmente contemplados com o privilégio de receber uma senha e aguardar mais duas horas. “Já há Internet!”.
E lá fomos sendo atendidos, um por um, com mais ou menos sorte no funcionário que nos calhou. Alguns ficaram para trás, por terem tirado a senha errada. “Vai ter de voltar amanhã”. Desesperos e ranger de dentes. Quem, como eu, conseguiu fazer o que tinha a fazer, ainda saiu a tempo de ir, já de comprovativo na mão, ao café presentear-se com um glorioso rissol, temperado com a certeza de que a história será a mesma da próxima vez.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.