ionline.sapo.ptAntónio Galamba - 6 dez. 09:20

Os passageiros da República e as voltas de Montesquieu no tumulo

Os passageiros da República e as voltas de Montesquieu no tumulo

A nossa história comum democrática está povoada com suficientes episódios de promiscuidade entre a política e a justiça, a justiça e os media ou a política e os negócios para que não sejamos complacentes com visões e opções turvas .

Portugal, sendo uma nação com as fronteiras estabilizadas há mais tempo, parece ter dificuldades em se levar a sério. Não será por isso de estranhar a degradação da confiança e do funcionamento das instituições e a emergência oportunista de fenómenos extremos orientados para a implosão dos equilíbrios do Estado de Direito Democrático.

Somos um país fofinho, até certo ponto, mas não hesitamos, por ação ou por omissão, em transpor linhas vermelhas que abrem precedentes graves para a República, para os seus pilares e para as suas dinâmicas, gerando campo fértil para os populismos mediáticos, políticos e afins que, desconfinados das mesas dos cafés, ganham expressão maior nas redes sociais e na ânsia de sobrevivências pela conquista de públicos.

Acumulação, ainda que transitória, das pastas da Administração Interna e da Justiça, por um membro do governo é a transposição para a organização de uma violação de um princípio basilar da organização do Estado, o da separação de poderes. Montesquieu deve estar às voltas no túmulo.

Como é possível o impulso que terá sido sonhado em 1928 ou no Estado Novo, mas que nunca foi concretizado, apesar de alguns, em democracia, já terem defendido a configuração?

Como é possível termos um Presidente da República que anui a tamanho disparate conceptual de juntar num só poder executivo a tutela das polícias e da justiça?

Como é possível não haver clamor social e político sobre a opção, independentemente da titular em causa, do governo ou do período de vigência da anormalidade?

Alguns dirão, que estamos a falar da organização do governo e não da intrusão do poder executivo na órbita do poder judicial, não havendo, portanto, violação da separação de poderes, será? Outros dirão que temos mais com que nos preocupar, seguindo o desprendimento inicial do poema de Bertolt Brecht “primeiro levaram os negros, mas não me importei com isso, não era negro” e o tardio despertar para as consequências das omissões iniciais “Agora levam-me a mim, mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém. Ninguém se importa comigo.”. Outros ainda que é por pouco tempo como se os princípios estivessem sujeitos a prazo de validade colocados ao nível dos iogurtes do supermercado.

A nossa história comum democrática está povoada com suficientes episódios de promiscuidade entre a política e a justiça, a justiça e os media ou a política e os negócios para que não sejamos complacentes com visões e opções turvas de princípios fundamentais da organização do Estado de Direito Democrático.

O que choca é a ligeireza do exercício político por quem deveria ser garante dos pilares essenciais da organização do Estado e da comunidade de destinos e do simbolismo que é transmitido para as pessoas. É que nem os zelosos guardiões da independência do poder judicial se manifestaram, quiçá por a titular da pasta ministerial ser uma colega originária da corporação em transumância pelas portas giratórias entre a justiça e o poder político. E mesmo quem fala por tudo e por nada em todo o lado, o Presidente da República, nada disse sobre o assunto e empossou a titular à socapa, apesar de ser um dos garantes da Constituição. Marcelo Rebelo de Sousa, que amiúde atravessa as linhas da separação de poderes e entra na órbita do poder executivo, viu na ocasião uma oportunidade para legitimar os impulsos passados, numa espécie de tragédia coletiva de falta de senso.

Chegados a este nível de degradação, é normal que os passageiros das funções do Estado, os passageiros da República, se comportem como a nação tem verificado em benefício dos media de geometria variável, de populismos e oportunismos políticos e de uma falta de senso demasiado generalizada rumo a uma degradação do ambiente político e social.

Os passageiros da República têm de se dar ao respeito, no quadro dos princípios basilares do Estado de Direito Democrático e de um quadro mais exigente da ética republicana, até além do que a lei prevê, para poder exigir outra atitude dos media e dos cidadãos.

Não faz sentido afocinhar na velocidade do carro do Ministro Cabrita, apesar da agravante da morte de alguém que também não cumpria as regras ao atravessar via rápida rodoviária, e absolver de juízo todos os membros dos governos desde 1974 que recorreram ao excesso de velocidade, os jornalistas que o fazem todos os dias rumo aos locais dos acontecimentos ou os cidadãos nos seus quotidianos.

É claro que há uma responsabilidade maior dos passageiros da República, mas os residentes da República não estão excluídos da exigência e do juízo crítico. Infelizmente, falam muito do que não conta verdadeiramente e fazem ainda menos. E, isso teima em não ser passageiro, mas perigosamente estrutural. Juntar polícias e justiça nas mãos de uma só pessoa do poder executivo é violar um princípio, abriu um precedente e mau para a República. Pena que ninguém ache o mesmo. Fraca democracia. Fracos democratas.

NOTAS FINAIS

NEM SE GOVERNA, NEM SE DEIXA GOVERNAR. O populismo é uma doença perigosa. Contagiou boa parte da sociedade, dos media às redes sociais. Saem notícias sobre despesas com horas extras no SNS, com gastos nas respostas dos municípios à pandemia e com despesa realizada nos posicionamentos dos territórios nas animações de Natal. É claro que podemos sempre invocar a pobreza e as necessidades básicas das pessoas, mas não fazer estas despesas daria lugar a notícias sobre a falta de investimento e de respostas. É preciso senso, coisa que vai rareando face à cultura populista inconsequente em crescendo.

OH CATARINA. O Bloco de Esquerda, agora como em 2009, contribuiu para deitar abaixo o Governo do PS, abrindo possíveis portas do poder à Direita, depois de ter feito parte da solução governativa durante 5 anos. Pode ter fumado, sem inalar, mas estes são os factos. Prossegue agora a narrativa da demarcação, que pode ser devolvida com variantes Bloco ao que diz. Por exemplo, “Podemos não saber se cada voto no Bloco de Esquerda vai defender o acesso dos portugueses à habitação, pelo que eminentes bloquistas como Ricardo Robles também representam”. Ainda sou do tempo em que uma majestosa rede de outdoors em todo o país, 365 dias do ano, só poderia existir com conforto bancário. O histórico é uma chatice. 

E NADA DE LEI DE EMERGÊNCIA SANITÁRIA. Estamos em situação de emergência de saúde pública há quase 2 anos. O governo criou em 1 de julho de 2021 uma comissão para fazer uma lei de emergência sanitária. Voltamos a estar num olimpo constitucional e legal frágil, montados numa lei da proteção civil e da dita comissão nada. Agora, nem parlamento há. 

Escreve à segunda-feira

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