observador.ptObservador - 6 dez. 07:12

A irresponsabilidade (política) como modo de vida

A irresponsabilidade (política) como modo de vida

Não admira que Eduardo Cabrita responsabilize o morto, o motorista ou até o carro — e ainda se julgue o melhor MAI do pós-25 de Abril. Sacudir a água do capote é a marca deste Governo.

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1 Façamos um pequeno exercício de memória. Fogos florestais de 2017 nos quais morreram 117 pessoas, um cidadão ucraniano espancado até à morte nas instalações do principal aeroporto do país, os 5.576 óbitos registados em janeiro de 2021 por covid-19 (na altura, 44,6% do total de mortes desde o início da pandemia) depois do relaxamento das regras para o natal de 2020, o assalto ao paiol de Tancos por um bando de amadores que levou Portugal a ser alvo de chacota internacional e, finalmente, um Governo que tem o marido, a mulher, o pai e a filha sentados à mesma mesa do Conselho de Ministros.

Todos estes casos — há muitos outros exemplos — conceptualizam um novo conceito de responsabilidade política. Na prática, a irresponsabilidade passou a ser a regra, sendo certo que em nalguns casos foram mesmo desafiadas as fronteiras da inimputabilidade política.

Basta ver o caso paradigmático dos fogos florestais em que António Costa, um professor catedrático na arte de sacudir a água do capote, começou por culpar a natureza e os seus fenómenos como se o determinismo fosse uma obrigação a seguir no rescaldo do fogo de Pedrógão Grande em 2017. E perante a repetição da tragédia uns meses mais tarde considerou “infantil” demitir a ministra Constança Urbano de Sousa.

Apesar das 117 mortes, só muito a custo (e após a intervenção do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa) o primeiro-ministro mudou de narrativa: assumiu a responsabilidade e pediu desculpa aos portugueses peço falhanço do seu Governo. Ao fim e ao cabo, aquela que deveria ter sido a sua primeira opção.

E assim chegamos à demissão de Eduardo Cabrita.

2Uma demissão que não aconteceu quando um cidadão ucraniano morreu de forma bárbara sob a custódia de órgão de polícia criminal tutelada por Cabrita e, claro, também não ocorreu quando um simples trabalhador foi atropelado mortalmente pela viatura onde seguia o agora ex-ministro.

António Costa limitou-se a aplicar o princípio da irresponsabilidade política: obviamente que Eduardo Cabrita nada tinha a ver com o assunto. Seguia no carro que atropelou o trabalhador? A viatura estava em deslocação oficial? O motorista ia claramente em excesso de velocidade? O ministro nem contactou a família para apresentar os seus sentimentos? Nada disso tinha importância. Em última instância, se existia algum culpado, só poderia ser o trabalhador que estava à hora errada no local errado.

Quando um primeiro-ministro entende que a politiquice é um conceito absoluto que a tudo se sobrepõe — inclusivamente à vida humana e à dignidade do Estado —, obviamente que os seus ministros (e logo um dos seus melhores amigos) limitam-se a seguir a música como os ratinhos seguiam o flautista de Hamelin.

Pior: o grande defensor do Estado de Direito, afinal, está-se nas tintas para o motorista acusado e, pior, não se preocupa com a família da vítima. Não está presente no funeral, não dá uma palavra pública de solidariedade e, ainda por cima, auto-vangloria-se como o grande ministro da Administração Interna e garante que a sua viatura é que foi “vítima” do acidente. Por amor da santa!

Se acredita mesmo no Estado de Direito, nomeadamente na separação de poderes, ter-se-ia demitido para preservar a independência da investigação da GNR. Pelo contrário, Cabrita preferiu continuar a tutelar o órgão de polícia criminal responsável pela investigação do atropelamento na A6.

Está claro que Eduardo Cabrita só se podia demitir para proteger o PS e a imagem do Governo. Não só a fidelidade partidária é o único valor que interessa aos politiqueiros, como é coerente com o princípio da irresponsabilidade.

Ironias à parte, é chocante constatar as artimanhas narrativas, o spin e a pura mentira (como a da via não estar sinalizada). Tudo isso vale mais do que a vida de um homem. Tudo isso é mais importante do que respeitar a família da vítima e, com isso, conferir dignidade ao Estado e à República. Tudo isto é repugnante.

3 Pelo meio, ainda aparece a mulher Ana Paula Vitorino a jurar publicamente o seu amor e a defender o pobre do Eduardo no Facebook. Uma vítima, claro está! Na volta, a cabecinha pensadora de Vitorino ainda deve pensar, como é habitual naqueles que não têm vida para além da política, que o pobre trabalhador ainda fazia parte de uma conspiração contra o ‘seu’ Eduardo.

Pior: perspicaz como sempre, Ana Paula Vitorino chega a invocar Jorge Coelho por este alegadamente ter dito que o ‘seu’ Eduardo era o último dos impolutos.

Chamar à colação um dos políticos que mais fez pela dignidade do Estado nos últimos 20 anos — ao demitir-se imediatamente a seguir à queda da ponte de Entre-os-Rios — para defender o ‘seu’ Eduardo mostra bem o nível de sonsice política de Ana Paula Vitorino.

Vitorino, que nunca viu qualquer problema em sentar-se no mesmo Conselho de Ministros que o seu marido, depende há muito tempo do Estado. Desde que passou de professora mal paga no Técnico para um aumento salarial como deputada na Assembleia da República, nunca mais deixou de depender do Orçamento de Estado. Como boa socialista, só poderia passar a ser reguladora por nomeação do Governo do PS. Deixou de ser política para passar a ser uma girl. Também faz sentido.

4 Volto ao início. Obviamente que a maior culpa de toda a indignidade que rodeou quer a manutenção de Eduardo Cabrita, quer a forma como saiu do Governo, é da responsabilidade de um primeiro-ministro que coloca as suas ambições políticas à frente da imagem e da credibilidade do Estado.

Basta recordar mais outro caso: a contratação de Lacerda Machado. Com toda a sua arrogância, Costa  demonstrou bem o que pensa da transparência quando contratou o seu best friend forever como conselheiro do Governo sem um único contrato. Só após muita pressão da opinião pública e do respetivo escrutínio jornalístico é que deu ordens para que a elaboração do referido contrato.

Insisto: a destruição do conceito de responsabilidade política por parte de Costa terá consequências no futuro e retirará moral política ao PS quando estiver na oposição e quiser escrutinar o Executivo. É mais uma herança pesada que o costismo deixará aos socialistas.

E ainda nos admiramos quando alguém diz que o país está cansado de António Costa e do seu Governo.

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