observador.ptObservador - 5 dez. 00:11

A secção de enchidos do Seabra’s

A secção de enchidos do Seabra’s

Quando alguém fala o que falo numa terra que não é nossa, encontramos uma casa para habitar. E lembramo-nos daquela frase do Fernando Pessoa, já feita cliché: “a minha pátria é a língua portuguesa”.

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O mais perto que estive de emigrar foram cinco meses passados nos Estados Unidos em licença sabática. Provei em aperitivo a experiência de tantos à minha volta, sobretudo o pessoal chegado do Brasil que a cada Domingo enche a nossa Igreja, na Lapa. E reconheci a velha sabedoria daquela ideia de ser preciso sair para compreender melhor o que temos c�� dentro, no lugar a que nos calhou pertencer.

Uma das minhas resoluções durante essa temporada era evitar contar os dias para o regresso a Portugal. E em todos eles lembrava-me de que não podia contá-los, o que não deixava de ser uma maneira de acabar a fazer o que queria impedir. Sentia-me corroído por saudade, adoentado num período que supostamente seria de sonho. Poder apenas descansar num país que amo tanto como os Estados Unidos seria uma espécie de céu na terra em circunstâncias normais, mas, tendo em conta o arrasado que estava, aquelas não eram circunstâncias normais.

Aterrei em Nova Iorque com a Ana Rute para mostrarmos à Maria, à Marta, ao Joaquim e ao Caleb, os nossos miúdos, aquela cidade incrível. E passámos cinco dias a encher-nos do melhor da City. De seguida, viajámos para Jackson, no Mississippi, onde nos esperava família (o Tiago, irmão da Ana Rute, e a nossa cunhada Marta, e os sobrinhos Rúben, David e Tiago). O sul dos Estados Unidos é o sítio perfeito para alguém se aperceber da sua insignificância. Não podia estar mais bem situado num sabático que devia desapetrechar-me das saloias glórias portuguesas que o meu cansaço acumulava.

Como o nosso objectivo era parar, não viajámos muito. Mas ainda deu para passar por Memphis, no Tennessee, por Nova Orleães, no Louisiana, e por Miami, na Florida (esta última viagem fiz só com o meu cunhado Tiago e o nosso amigo Diego, que, sendo um brasileiro que vive em Portugal, nos visitava no Mississippi). Uma visita tornou-se obrigatória em Pompano Beach, naquela margem oposta do Atlântico: o supermercado português Seabra’s. Lá fomos, não esqueçam, comigo em luta interna de resistência à saudade de Portugal. Estava agora num lugar que misturava explosivamente a eficácia comercial americana com produtos portugueses. O meu coração era débil diante desse certeiro capitalismo emocional.

Enquanto o meu cunhado se dirigiu ao bacalhau e o Diego ao guaraná (porque nos Estados Unidos, o Brasil dá um novo vigor às nossas velhas lojas), eu vagueei até ao fundo do supermercado onde, sem antecipar, ouço na zona dos enchidos as senhoras que serviam ao balcão falar português. Não sei bem o que aconteceu mas em menos de nada corriam-me lágrimas pelos rosto. Reparem: durante aqueles meses eu mantinha-me, como é óbvio, a falar português com a minha família, e, naquela mesma longa viagem de carro entre o Mississippi e a Florida, conversávamos os três sempre na nossa língua. Mas o certo é que ouvi-la agora assim, entregue a gente desconhecida, fazia-me pertencer a um lugar que não tinha como meu. Como pregador protestante, sou um profissional na ênfase de que tudo no Universo é texto — porque tudo o que existe resulta do uso do verbo divino. Deus disse “faça-se” e tudo o que há foi feito. Mas nunca tinha compreendido como este facto teológico se podia concretizar com tanta força na relação que temos com o lugar a que pertencemos. O nosso lugar é, de facto, a nossa língua. E a partir daí entendi que essa língua, na sua essência, não é algo que nós temos mas algo que nós somos. Claro que agradeci a Deus por ter voltado a Portugal depois desses cinco meses americanos—mas também entendi que o meu lugar poderia ser qualquer um, desde que nele a minha voz fosse atendida.

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