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A verdade da história do Café Martinho da Arcada: a Associação Pessoana – II

A verdade da história do Café Martinho da Arcada: a Associação Pessoana – II

Urgia encontrar mecenas que apoiassem a recuperação do Martinho da Arcada e a única solução estava na criação de uma associação de âmbito cultural e sem fins lucrativos. Foi assim que nasceu, em 1987, a Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da

Que humano era o toque metálico dos eléctricos!
Que paisagem alegre a simples chuva na rua
ressuscitada do abismo!
Oh, Lisboa, meu lar!
Fernando Pessoa/Bernardo Soares,
Livro do Desassossego

A 28 de Novembro p.p., foi publicada a primeira parte da história do Café Martinho da Arcada, relativa à classificação de interesse público do seu interior (1984-1985). Esta experiência, com alunos entre 16 e 18 anos, foi de extrema importância para eles, e também para mim, porque, fruto de contactos controversos com o poder político e com a própria comunicação social por aquele, muitas vezes, influenciada, tornou-nos mais conscientes da imperiosa necessidade de pensar por nós próprios, não aceitando que nos privem da nossa “voz activa”.

Com efeito, a “classificação de interesse concelhio”, determinada pela CML (14.2.85) ao arrepio da moção anteriormente aprovada por unanimidade (16.4.84), e a sua imediata aceitação pelo Ministério da Cultura, punha em risco os nossos objectivos, não estando em sintonia com o que nos fora dito presencialmente. Mas esse facto, longe de nos desmotivar, exacerbou a nossa vontade de cumprir o que delineáramos e que toda a sociedade portuguesa abraçara, para além de nos forçar a duas idas a jornais, uma, ao Diário Popular, e, outra, ao Correio da Manhã, que certamente por desnorte informativo afirmavam o que nunca disséramos (a aceitação da classificação de interesse concelhio do interior do café), intitulando as suas notícias, respectivamente, “Martinho da Arcada está suficientemente defendido” (3.4.85) e “Polémica inútil em torno do caso Martinho da Arcada” (12.4.85).

“Senhora professora, cumpra a sua função de dar aulas e deixe-nos cumprir a nossa de tratar da cultura”. A minha reacção foi tão imediata, que só me apercebi do seu teor pelo ar medusado do Chefe de Gabinete que se encontrava também na sala: “Não me cingirei só às minhas aulas, Sr. Presidente, porque, na verdade, nem eu nem os meus alunos temos total confiança nos que, oficialmente, têm a seu cargo a defesa da cultura”

Daí também o pedido urgente de uma reunião ao presidente do IPPC (João Palma-Ferreira), para que a classificação fosse revista, no âmbito das comemorações do cinquentenário da morte de Pessoa. Foi durante o desenrolar da referida reunião que lamentei os avanços e recuos do IPPC, demonstrando também que conhecia perfeitamente o significado das classificações a que se referiam e que a seu ver protegeriam o Café: a de 16.6.1910 (“Monumento Nacional por estar incluído na Praça do Comércio”) e a de 12.9.1978 (“imóvel de interesse público por se incluir na zona da baixa pombalina”). Teriam esquecido que essas classificações não abrangiam o interior do Café, objectivo único da nossa “Carta-Aberta”? Foi então que João Palma-Ferreira, perante o meu descontentamento, me aconselhou: “Senhora professora, cumpra a sua função de dar aulas e deixe-nos cumprir a nossa de tratar da cultura”. A minha reacção foi tão imediata, que só me apercebi do seu teor pelo ar medusado do Chefe de Gabinete que se encontrava também na sala: “Não me cingirei só às minhas aulas, Sr. Presidente, porque, na verdade, nem eu nem os meus alunos temos total confiança nos que, oficialmente, têm a seu cargo a defesa da cultura”. E salvo as devidas e profundas diferenças, lembrei-me nesse momento do que acontecera ao sapateiro Bandarra, por parte da Inquisição. Narro-o em poucas palavras: em género de ameaça para que Bandarra abjurasse das suas trovas profeticamente “hereges”, foi-lhe dito: “Sapateiro, não vás além do calçado!” (1541).

O despacho de 24.4.85, assinado pelo Ministro da Cultura, Coimbra Martins, ao anunciar o final feliz da história contada, deu lugar a uma imensa manifestação de alegria, por parte de todos os que se tinham empenhado nesta causa. O Martinho da Arcada festejou o acontecimento, num jantar que recebeu cerca de 80 convivas, a 12 de Junho, véspera do aniversário de Fernando Pessoa. Noticiaram-no de forma mais substancial os jornais Correio da Manhã (13.6.85) e Diário de Notícias (15.6.85).

Pensando que chegara ao fim a nossa tarefa, foi de respiração suspensa que, nesse jantar, falando com o arquitecto Mota Carneiro (IPPC), o ouvi dizer que a acção teria de continuar pois urgia encontrar mecenas que apoiassem a recuperação do Martinho da Arcada e a única solução estava na criação de uma associação de âmbito cultural e sem fins lucrativos. “Não havia tempo a perder!” Foi assim que retomei contactos, depois de digerir o conselho audacioso, e consciente das dificuldades pelas quais o Martinho passava, envolvendo igualmente novos e ex-alunos, em novas iniciativas culturais, no seguimento da narrativa que iniciáramos, preparando assim caminho para a criação de uma associação. Os novos alunos eram estudantes-trabalhadores do ensino nocturno, 2.º ano Complementar de Mecanotecnia e de Electricidade, da Escola Secundária Marquês de Pombal, e o facto de trabalharem tornou a sua intervenção ainda mais relevante, merecendo um elogio televisivo de Alçada Baptista que, parafraseando, se surpreendera, no encontro que com eles tivera, no Martinho, ao ouvi-los falar, com prazer e conhecimento, da poesia pessoana.

Uma das iniciativas que organizámos, com o intuito de continuar a dinamizar os espaços pessoanos e a chamar a atenção para a necessidade de a sua salvaguarda ser efectiva, teve lugar no Largo de São Carlos, em Julho de 1986. Os apoios foram generosos e diversos: CML (Dr. Veríssimo Pires, Arq. Victor Reis, Eng. Edgar Fontes, Dr. João Pina, Eng. Sande de Freitas), Teatro Nacional de São Carlos (Dr. João de Freitas Branco), Robbialac Portuguesa, Montepio Geral, Radiodifusão Portuguesa, Companhia Portuguesa de Fornos Eléctricos e Escola Secundária Marquês de Pombal. A comunicação social esteve presente e noticiaram a iniciativa, com algum desenvolvimento, o Diário de Lisboa (9.7.86), O Dia (11.7.86) e o Diário Popular (12.7.86), referindo todos a programação: leitura de poemas pessoanos pelo actor Luís Lucas, representação da peça “O Milagre das Rosas” pelo Grupo de Marionetas de S. Lourenço, coro do Teatro Nacional de São Carlos, dirigido pelo seu director-tutelar Gianni Beltrani, interpretando Verdi, Mozart e Puccini, e Pedro Caldeira Cabral, acompanhado por Francisco Perez, num concerto de guitarra portuguesa. Tinham as pessoas, à sua disposição, uma grande esplanada no Largo de São Carlos, apoiada por comes e bebes, e venda de manjericos, enfeitados com cravos de papel multicor, com quadras pessoanas, e assim aconteceu “com certa intimidade, ou melhor, sem grandes multidões como ele [Pessoa] gostava, uma festa-convívio”, nas palavras do jornalista do Diário Popular. Nesta fase do nosso trabalho, não posso deixar de lembrar, e em saudade, o encontro marcante que tive com Emídio Rangel, Fernando Alves, Mário Murcho e José Manuel Gouveia. O programa chamava-se “Ver, ouvir e contar” e passou na RDP 1. Mais tarde, a divulgação de iniciativas da nova Associação e, posteriormente, do concurso de ideias para a recuperação do café pessoano, aconteceria já na TSF, uma TSF exuberante e avidamente procurada.

Espontânea foi a adesão à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), oficialmente registada em Maio de 1987, por parte de muitos que haviam integrado o movimento e que consigo trouxeram outros amigos: Margarida de Mendia, Alçada Baptista, José Blanco, Pedro Vieira de Almeida, Rui Godinho, Pedro Tamen...

Espontânea foi a adesão à Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA), oficialmente registada em Maio de 1987, por parte de muitos que haviam integrado o movimento e que consigo trouxeram outros amigos: Margarida de Mendia, Alçada Baptista, José Blanco, Pedro Vieira de Almeida, Rui Godinho, Pedro Tamen, Vilhena de Carvalho, Magalhães Mota, José Manuel Mendes, Manuel Alegre, João Rui de Sousa, Francisco Simões, Irisalva Moita, Albertina Mourão, Luís dos Santos Ferro, Corregedor da Fonseca, Maria José de Lancastre, Arnaldo Saraiva, Lívio Borges, Augusto Seabra, David Mourão-Ferreira, Yvette Centeno, Luís Francisco Rebelo, Pedro Alvim, José Jorge Letria, Jorge Peixoto, Luís Pedro Moitinho de Almeida, Fernando Sylvan, Mário Sottomayor Cardia, Raúl Rego, Francisco Peixoto Bourbon, Joaquim Montezuma de Carvalho.

O nome da associação e a elaboração dos seus estatutos deveu-se ao pequeno grupo constituído por Pedro Vieira de Almeida, Rui Godinho, Manuel Vilhena de Carvalho, Júlia Fernandes e eu própria, com a preciosa colaboração do advogado Moitinho de Almeida que conhecera bem Pessoa, sendo filho de um dos patrões para quem o poeta trabalhara, na sua função de “guarda-livros”. Realço, por considerar de interesse, o segundo artigo dos Estatutos: “A Associação tem como principais objectivos o estudo e a preservação e animação do património de Lisboa, enquanto ambiente pessoano, bem como a divulgação da Vida e Obra de Fernando Pessoa, integrados no meio literário e nos espaços culturais e físicos em que uma e outra decorreram e ainda a promoção do convívio e solidariedade entre todos os associados com vista à plena realização daqueles objectivos e fins.”; e ainda o terceiro artigo, alínea a) “Desenvolver acções próprias e patrocinar outras que visem a defesa e preservação criteriosas da paisagem urbana de Lisboa, nomeadamente dos espaços em que a vida de Fernando Pessoa decorreu, dando particular relevo aos seus lugares de convívio literário e humano, nomeadamente o Café Martinho da Arcada”.

Estes dados ajudarão o leitor interessado a compreender melhor o porquê da polémica, após a reabertura do Martinho da Arcada, em 1990, tema a ser desenvolvido num outro artigo, parte III. Nesse sentido, será também importante mencionar que a primeira direcção da APAMA integrava Alçada Baptista, como presidente, eu própria como vice-presidente, Margarida Lages e Rui Godinho, como secretários, sendo tesoureiro Mário Matos, genro de D. Albertina Mourão. Ainda em 1987, e após a primeira Assembleia Geral, presidida por Moitinho de Almeida, ocupei o cargo de presidente, Pedro Vieira de Almeida o de vice-presidente, Manuel Vilhena de Carvalho e Júlia Fernandes o de secretários e Mário Matos, o de tesoureiro.

Porque, neste campo, várias têm sido efectivamente as incorrecções, inclusive oficiais, impõe-se dar conta das várias iniciativas que ocorreram no Martinho da Arcada, com datas e intervenientes. Como acontece na História, o rigor, as datas, os documentos assinados são essenciais para não se deturpar a verdade

O número de associados foi-se multiplicando, muito devido à dinamização cultural que desenvolvemos desde logo no Café Martinho da Arcada, e noutros espaços, no âmbito dos estatutos aprovados, o que acontecia pela primeira vez, aliás, com grande regozijo de D. Albertina Mourão que, em diferentes momentos, o demonstrou em público e em privado. Porque, neste campo, várias têm sido efectivamente as incorrecções, inclusive oficiais, impõe-se dar conta das várias iniciativas que ocorreram no Martinho da Arcada, com datas e intervenientes, e que a comunicação social sempre divulgou e instituições várias apoiaram e algumas repetidamente (Instituto Português do Livro e da Leitura, Fundação Gulbenkian, Casa Custódio Cardoso Pereira, CML, Centro de Estudos Judiciários, RDP 2). Como acontece na História, o rigor, as datas, os documentos assinados são essenciais para não se deturpar a verdade.

Foi objectivo da APAMA concretizar mensalmente uma iniciativa cultural, no Martinho da Arcada, tendo acontecido algumas vezes, no entanto, 2 e 3 sessões num único mês, sendo a entrada livre e com direito a programa. Acreditando seriamente na verdade de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, celebrámos sempre os seus aniversários, juntamente com o de Fernando Pessoa, seu criador. Na verdade, o nosso entusiasmo era exuberante e o desejo de ajudar a encontrar uma solução para a degradação física do café, ou de qualquer outro espaço pessoano significativo, era também tão intenso que contagiava quem vinha até nós. O plano de actividades culturais que tenho em minha posse abrange o período entre Outubro de 87 e Dezembro de 88, guardando também alguma programação de 1990. Foram muitos os intervenientes: António Victorino de Almeida (29.10.87), Alçada Baptista (27.11.87), Pedro Caldeira Cabral e Francisco Perez (19.12.87), Segréis de Lisboa (29.1.88), Eugénio Lisboa (19.2.88), Grupo Amigos de Lisboa (5.3.88), Nuno Teotónio Pereira (18.3.88), Redacção da Revista espanhola Con Dados de Niebla (9.4.88), Rui Mário Gonçalves (-.4.88), Manuel Gusmão (14.5.88), Oliveira Marques (20.5.88), Orquestra Juvenil de Adriana de Vecchi, sob a direcção de Leonardo de Barros (4.6.88), Germana Tânger (12.6.88), Agostinho da Silva e o actor Luís Lucas (13.6.88), José Duarte (17.6.88), José Saramago (2.7.88), Pedro Vieira de Almeida (13.7.88), Agostinho da Silva (14.10.88), Pedro Teixeira da Mota (31.10.88), Trio do Maestro António Victorino de Almeida, Peter Marinoff e Enrika Pluhar (2.11.88), Maria Amélia Gomes (17.12.88).

Termino com a dedicatória do arquitecto Nuno Teotónio Vieira, no dia em que falou, no Martinho sobre “Vilas operárias, nos anos 20”: “À APAMA, com os votos de uma acção persistente e entusiasta na defesa e na promoção da nossa Lisboa – cidade de Fernando Pessoa”

Foram também muitas as iniciativas pessoanas que a APAMA realizou noutros espaços, nomeadamente no Largo de São Carlos, Grupo “Metais de Lisboa” (13.6.88), no Centro de Estudos Judiciários (CEJ), Sala Bocage, com a apresentação da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos, pelo actor João Grosso (15.10.88), ainda no CEJ, um concerto pelo pianista Nuno Vieira de Almeida e António Wagner (barítono), (25.5. 1990); na Sala do Clube dos Jornalistas, Olivier Rolin, autor de “Le bar des flots noirs”, falou a propósito do seu livro traduzido em português, “O Bar da Ressaca”, evocando precisamente o Café Martinho, (20.5.90). Em conjunto com a Quimera Editores (José Carlos Alfaro), a APAMA apoiou e divulgou a exposição no Instituto Franco-Português, Mário de Sá-Carneiro, Centenário do Nascimento, de 3 a 31 de Maio de 1990, organizada por Marina Tavares Dias, a jornalista que, aliás, divulgou no Diário de Lisboa, e em pormenor, a dinamização cultural da APAMA, no Café Martinho da Arcada.

Termino com a dedicatória do arquitecto Nuno Teotónio Vieira, no dia em que falou, no Martinho (18.3.88) sobre “Vilas operárias, nos anos 20”: “À APAMA, com os votos de uma acção persistente e entusiasta na defesa e na promoção da nossa Lisboa – cidade de Fernando Pessoa.”

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