eco.sapo.ptCarlos Marques de Almeida - 5 dez. 07:00

Ministro passageiro

Ministro passageiro

A invocação da condição de “passageiro” é tão ridícula como lesiva do bom nome do Estado, da boa-fé democrática, do carácter dos servidores da República.

O acidente aconteceu na A6 no mês 6 e demorou 6 meses para se conhecer a acusação – 666 é o “número da Besta”, a marca do Diabo político à solta a 163Km/h nas auto-estradas de Portugal. Um cidadão português anónimo morreu numa vala comum entre duas faixas de rodagem e o Ministro e o seu Governo fizeram um silêncio sepulcral. O desprezo arrogante com que o Governo tratou este caso é uma ofensa a todos os portugueses e representa a estima democrática que atinge toda a Nação não Socialista. Veja-se o contraste insuportável com a solidariedade fraternal entre o Primeiro-Ministro e o Ministro da Administração Interna. Afinal parece que há cidadãos menores, descartáveis, miseráveis, dispensáveis dos cálculos políticos de conveniência. Uma lição a reter sobre a visão do Estado nesta ocasião democrática.

Seis meses depois o motorista funcionário ao serviço do Ministério é acusado de “condução imprudente” e de “homicídio por negligência” e vai a julgamento pela responsabilidade na morte do trabalhador. Estranhamente não existem mais responsáveis, nem próximos, nem distantes, enquanto o Ministro da Administração Interna se esconde por detrás do argumento do Estado de Direito para aligeirar qualquer vestígio de responsabilidade.

A invocação da condição de “passageiro” é tão ridícula como lesiva do bom nome do Estado, da boa-fé democrática, do carácter dos servidores da República que usam o Estado de Direito como um privilégio superior e não como uma responsabilidade superlativa. Para não falar na componente moral do cargo. A questão que se levanta não é uma formalidade jurídica, mas a não admissão de uma responsabilidade política e moral perante uma circunstância em que o responsável maior se confronta na pessoa do Ministro. Na lógica utilitária da sobrevivência política, o funcionário condutor é o elo mais frágil, mais fraco, o homem com as mãos no volante e o pé no acelerador. O lugar do motorista é o lugar de cada um e de todos os cidadãos anónimos ao serviço do Estado.

O Ministro só seria tecnicamente um passageiro se fosse em deslocação pessoal e em transporte público ou particular. Mas não. O Ministro deslocava-se em nome da República, numa viatura do Estado conduzida por um funcionário público ao seu serviço e descrição, logo a referência à condição de passageiro é um expediente primário e politicamente pouco sofisticado.

Por esta lógica, o Ministro até pode ser considerado uma peça de bagagem, uma mala perdida a ser reclamada na secção dos perdidos e achados. Certo é que o Governo nunca o perdeu e os seus serviços como Ministro foram sempre considerados como um achado. E aqui reside o “repugnante aproveitamento político de uma tragédia pessoal” – a indiferença, a agressividade, a desumanidade, de quem não quer retirar as consequências de um comportamento que carece de justificação democrática e que exibe a superioridade política de uma licença moral para retirar no futuro imediato a conjugação da justiça com a palavra esperança. Mas a metafísica e a decência não têm lugar na pasta do Ministro.

Num brusco reflexo quase freudiano, o Ministro não consegue evitar a referência ao facto de ter havido o “atravessamento de uma zona sem sinalização”. E subitamente é novamente a vitimização do Ministro e a condenação abrupta e sem interferência do Estado de Direito do cidadão atropelado e privado da vida pelo Estado em movimento acelerado em direcção ao bem da Nação.

A insistência na inversão do ónus da responsabilidade significa que o Ministro tem consciência da gravidade dos factos, mas esquece o humanismo e a solidariedade de um homem de Esquerda. Foi o País poupado a uma qualquer teoria da conspiração inventada pela repugnante Direita para prejudicar a dignidade ministerial e os progressos do Governo. Mas para a prevenção rodoviária e segurança na circulação nas auto-estradas nacionais devia inventar-se um novo sinal de trânsito: “Perigo – Ministros em Deslocação”.

Um ponto de ordem sobre o humanismo e a solidariedade de um homem de Esquerda enquanto Ministro. Toda a postura, todo o silêncio, todos os escassos argumentos do Ministro, apontam para a atitude moral de um homem posicionado politicamente numa certa tradição da Direita. Quando se fala de responsabilidade em Portugal, a “eterna solteira”, para esta Direita as vítimas são sempre responsáveis – os trabalhadores, os pobres, os novos, os velhos, os analfabetos. Os cidadãos devem mostrar respeito pelos superiores, devem obedecer, devem ter um comportamento decente, devem respeitar as regras e as leis, andar na linha, “cumprir e calar”.

No lado do Estado é a distinção hierárquica entre os Ministros e os Cidadãos. No lado da Sociedade Civil é a separação hierárquica entre os Poderosos e os Dependentes. É a lógica dos Deveres e do Respeito, logo a responsabilidade do acidente é uma tragédia para o Ministro porque um cidadão incauto não se esforçou, não investiu no futuro, não se sacrificou, não estudou, não adquiriu uma profissão, não subiu na vida, não foi o orgulho da família nem o orgulho da Nação.

A morte no asfalto é o símbolo de um País atrasado, é o retrato de um País que existe e subsiste num não-lugar onde apenas passam automóveis que o ignoram. Até que uma viatura do Estado o projecta para uma civilização no outro lado da vida.

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