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Gouveia e Melo: ″Houve períodos em que podíamos ter tido mais cuidado″

Gouveia e Melo: ″Houve períodos em que podíamos ter tido mais cuidado″

O vice-almirante Gouveia e Melo, um dos rostos mais conhecidos da atual pandemia da covid-19, abriu o livro da sua vida e esteve, este sábado, à conversa com Daniel Oliveira, no programa "Alta Definição", na SIC.

Foi com um estaleiro da Marinha como fundo que o militar explicou como foi liderar a task force que levou o plano de vacinação a bom porto e as dificuldades que enfrentou. "A parte inicial foi mais complicada porque ainda não tinha a estrutura montada e a funcionar de acordo com os padrões que eu desejava, e tinha uma grande incerteza sobre o que podia acontecer, mas depois com o tempo e à medida que fomos alcançando os resultados pretendidos fui tendo mais confiança no processo. As pessoas foram maravilhosas, quer a população na sua resposta, quer as pessoas do Sistema Nacional de Saúde e isso ajudou-me imenso", explicou.

O militar confessou ainda que apesar da sua carreira não tem "um tendão autoritário" e que o que pretende é convencer as pessoas. "As pessoas podem pensar que eu gosto de mandar ou que tenho algum tendão autoritário, mas não, gosto é de convencer que é muito diferente. Uma vez criado um campo magnético as pessoas depois agem bem e agindo o processo avança muito rapidamente", acrescentou.

O vice-almirante, que já aquando da tragédia de Pedrogão Grande tinha dado cartas ao liderar a distribuição de bens, abordou ainda questões como o negacionismo.

"Assusta-me, mas mais pelo obscurantismo que está por trás do negacionismo. Como é que nós no século XXI, com tanta informação conseguimos acreditar em coisas tão exóticas como que alguém nos vai implantar um chip da Microsoft quando nos estão a dar uma injeção. Esse tipo de informação e esse tipo de crenças dá-me receio porque essas crenças podem ser manipuladas para coisas muito piores, para extremismos, extremismos religiosos, extremismos políticos e tudo isso dá-me algum receio enquanto cidadão. Acho que o cidadão lógico normalmente é um bom cidadão, um cidadão ilógico é um cidadão perigoso porque pode ir por muitos caminhos e há caminhos onde essa ilógica pode ser manipulada. E hoje com o acesso que a Internet permite a esses efeitos bolha e de rede social e desinformação podemos criar aqui fenómenos perigosos para a sociedade", acrescentou.

O coordenador da task force revelou ainda que a frieza não é uma característica sua e que tem dificuldade em lidar com algumas situações. "Como militar estou habituado a reagir a situações difíceis, mas afeta-nos. Tenho de lhe dizer que fico afetado quando me chamam assassino e genocida porque não estou habituado a esse tipo de linguagem. E esse tipo de coisas mexe comigo, eu tenho origem judaica, como muitos portugueses, e quando falam em genocídio mexe comigo, não são palavras que se possam usar de forma simples", confessou.

Gouveia e Melo não quer ser lembrado como alguém imprescindível

O militar revelou também que ainda hoje muitas são as pessoas que o abordam na rua para lhe agradecer pelo trabalho desenvolvido, contudo garante que não quer ser lembrado como alguém imprescindível, mas sim como "uma pessoa que conseguiu fazer uma coisa em conjunto com outras pessoas e por ter sido uma pessoa que conseguiu ajudar uma corrente a desenvolver toda a sua energia, todo o seu potencial".

O trabalho desenvolvido nem sempre foi fácil e Gouveia e Melo garantiu ainda que conseguiu tirar algumas lições desse período em que liderou a task force. "A grande lição de humildade e humanidade é que perdemos mais de 18 mil portugueses em um ano e meio e estão a morrer todos os dias cinco a dez pessoas fruto desta pandemia. Muitas vezes pensamos que isto são estatísticas, mas não são. Recentemente estive com um senhor, numa palestra que disse que perdeu a mãe e o irmão e tocou-me. 18 mil mortes foram nove mil famílias afetadas e isso marca-me. Não conseguir evitar isso é uma responsabilidade de todos nós", referiu.

No entanto, e apesar do sucesso do plano de vacinação, o militar confessou que se podia ter salvo mais vidas. "Acho que houve períodos em que podíamos ter tido mais cuidado em conjunto com esse cuidado podíamos ter salvo quatro, cinco, seis mil vidas. Muitas vezes pensamos, pronto o senhor é idoso morreu com 80 anos e há uma ideia subjacente a isto muito má. Uma hora de vida de um idoso é menos importante que uma hora de vida de um jovem, porquê? Com base em que ética? Todas as horas de vida são importantes, as pessoas devem ter dignidade enquanto vivem, devem ter direito à sua vida, não podemos relativizar isso", frisou.

Uma infância "feliz" com pais "extraordinários"

Mas como Gouveia e Melo é muito mais que um militar, durante a conversa com Daniel Oliveira abordou ainda aspetos da sua vida pessoal, dos seus filhos - um engenheiro informático e outro médico - e da sua infância, período que passou em África. "[Durante esse período vi os meus filhos] muito pouco primeiro porque havia regras de contenção e não podia estar muito com a minha família. O meu filho mais velho é médico e fez parte no combate neste processo e até nisso tivemos cuidado. A minha mãe ainda é viva e é uma senhora idosa e tínhamos que ter muito cuidado. Havia uma coisa que nos unia, estávamos todos a combater e o meu filho disse uma vez essa frase e emocionou-me muito", contou.

"Tive uma infância muito feliz e livre. Os meus pais eram extraordinários. Quando fiz 12 anos o meu pai obrigava-me a ler os jornais. À noite sentava-me com ele e obrigava-me a comentar os artigos com ele, portanto foi importante a forma como fui crescendo", lembrou ainda.

O vice-almirante acabou ainda por se emocionar ao lembrar um dos momentos mais marcantes da sua vida, a morte do pai. "O meu pai morreu no dia em que fiz 21 anos e isso foi uma marca. Senti aquilo com um testemunho, a passagem de um testemunho porque ele sofreu muito teve um cancro. Acho que ele morreu de propósito naquele dia para passar o testemunho. Estava com ele no dia em que morreu. Era cadete e pedi dois dias de dispensa para estar com ele", recordou.

O militar acabou ainda por referir quais são para ele as características de um verdadeiro líder: "Visão, coragem e valores. Depois deve ter capacidade organizativa, empática e de comunicação. Mas essas são as três coisas que se não tiver uma delas não será líder de certeza".

Recorde-se que o vice-almirante Gouveia e Melo foi distinguido, em novembro, com o Prémio Nacional de Bioética, atribuído pela Associação Nacional de Bioética em conjunto com a Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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