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Visão | Magistratura: O "problema" de ser mulher que fez nascer a "obviamente feminista" Associação das Juízas Portuguesas

Visão | Magistratura: O "problema" de ser mulher que fez nascer a "obviamente feminista" Associação das Juízas Portuguesas

As magistradas judiciais, “pela ausência ao serviço relacionada com a licença de maternidade, ou com gravidezes de risco, ou com o apoio à família, são objetivamente prejudicadas na avaliação que lhes é feita para efeitos de progressão profissional, por terem produzido menos”, denuncia à VISÃO a juíza Paula Ferreira Pinto

Oiça-se o que uma juíza contou aos autores de uma pesquisa do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra: “O que eu vejo nas minhas colegas é um esforço brutal de sair daqui [do tribunal] a horas decentes. Por exemplo, sair daqui por volta das cinco e meia, seis, ir a correr buscar os miúdos à escola ou levá-los para casa e dar-lhes de jantar, metê-los na cama e, depois, começar a trabalhar. Ou então, se nesse dia a pessoa está completamente estoirada, no dia a seguir tem que se levantar às cinco da manhã e começar a trabalhar.” Outro exemplo – um relato feito aos mesmos investigadores por uma juíza em início de carreira, recordando um diálogo com o seu diretor de estágio: “Eu às seis e meia disse-lhe: ‘Senhor Doutor, eu tenho que me ir embora porque a creche do meu filho vai fechar e eu tenho a viagem para Coimbra para fazer.’ (…) E o senhor diretor de estágio respondeu-me: ‘As mulheres na magistratura são um problema porque têm filhos, e há muitas licenças, e, depois, não há juízes para as substituir’.”

Estes relatos encontram-se num estudo do CES da Universidade de Coimbra, feito em 2020 e 2021, sobre as condições de trabalho nos tribunais portugueses, e cujas conclusões preliminares foram apresentadas, em outubro último, no encontro anual do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Um dos investigadores diria ainda à plateia que a equipa do estudo detetou “magistradas a trabalhar” enquanto estavam de licença de maternidade, uma anormalidade evidente. Uma das conclusões apresentadas, aliás, aponta para “sinais inquietantes, em particular em alguns tribunais e com maior incidência nas mulheres, de exaustão e distanciamento (burnout)”. Por isso, os autores do estudo recomendam, desde já, a concretização nos tribunais de um “plano de igualdade de género” e de “mecanismos de prevenção e atuação em questões de assédio e outros direitos laborais”.

Na mesma altura em que se realizou aquele encontro do CSM, a Associação das Juízas Portuguesas (AJP), organização cívica e sem cariz sindical, comemorou o seu 3.º aniversário. E o que ali foi revelado “só significa que as razões que levaram à constituição da AJP são válidas e merecem ser tidas como tal, e apreciadas com objetividade e distanciamento”, diz agora à VISÃO a presidente da associação, Paula Ferreira Pinto, 49 anos, juíza no Tribunal Cível de Mafra. Que caracteriza a AJP sem complexos: “Considerando o movimento feminista como nós o encaramos, de promoção dos direitos humanos, de igualdade entre os géneros, ou seja, de direitos fundamentais consagrados na Constituição, obviamente que é uma associação feminista.” 

Segundo os últimos números disponíveis, relativos a 2020 e do Instituto Nacional de Estatística (INE), as juízas estão em esmagadora maioria na 1.ª instância, com 870 magistradas (69%) para 398 magistrados (31%). Mas, de acordo com aqueles dados do INE, a situação inverte-se nos tribunais superiores – há 261 juízes (56%) para 202 juízas (44%).

Comentando as diferenças de género entre a 1.ª instância e os tribunais superiores, a presidente da AJP diz que as magistradas judiciais, “pela ausência ao serviço relacionada com a licença de maternidade, ou com gravidezes de risco, ou com o apoio à família, ainda de uma forma prevalecente assegurado pelas mulheres, são objetivamente prejudicadas na avaliação que lhes é feita para efeitos de progressão profissional, por terem produzido menos”.

Sem apontar o dedo a ninguém

A ascensão aos tribunais superiores, considera Paula Ferreira Pinto, “faz-se por mérito e os critérios objetivos até são neutros – o problema é a questão social subjacente”. Nas licenças de maternidade, por exemplo, “a ausência de mês e meio da mulher é obrigatória, e o demais pode ser repartido entre os progenitores”. No entanto, “na maioria das vezes não é isso que se passa”. A presidente da AJP diz até conhecer “colegas homens que já manifestaram a sua intenção de exercerem estes direitos de parentalidade, mas que se sentem constrangidos a não o fazer porque isso pode ser depois valorado negativamente numa inspeção futura”. 

Estudo sobre as condições de trabalho nos tribunais detetou
“sinais inquietantes, e com maior incidência nas mulheres, de exaustão e distanciamento (burnout)”

Paula Ferreira Pinto salvaguarda que “a magistratura não existe à parte da sociedade nem é um núcleo de exemplo de mácula”. As questões em causa, acrescenta, “vêm do social e do cultural para o exercício funcional e não são diferentes do que se passa em outras profissões e noutros enquadramentos sociais”. 

E replica-se a falta de tempo para dedicar à valorização profissional e de conhecimentos. “Se me apresento como magistrada e não tenho literatura de Direito produzida, nem faço mestrados ou pós-graduações, porque tenho todo um ambiente familiar que não me permite libertar tempo para isso, obviamente que não posso ser valorizada por uma coisa que não possuo”, exemplifica a presidente da AJP. 

Aqui, nota Paula Ferreira Pinto, não se pode falar “em qualquer preconceito ou menor sensibilidade para as questões femininas no exercício profissional, de forma direta”, para acrescentar: “Há é que trabalhar nos campos social e das mentalidades, de modo a que exista um maior equilíbrio na repartição das tarefas de cuidado, por forma a permitir que as mulheres tenham tempo mais liberto para se dedicarem àquelas valências.”

Por tudo isto, diz a juíza, “a AJP não é uma velocista, é uma maratonista” que corre por “um projeto de salvaguarda e de promoção de direitos humanos”, no caso das magistradas judiciais, que só tiveram acesso à profissão no advento da democracia, há 47 anos, após o 25 de Abril de 1974. “Apenas pretendemos contribuir para uma solução, sem apontar o dedo a ninguém – sabemos bem que os juízos de valor não nos ajudam em nada”, afirma Paula Ferreira Pinto.

Mas como se compatibiliza a novata AJP com a institucional e influente Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP)? Paula Ferreira Pinto responde que não observa na ASJP “qualquer intenção de secar outros movimentos associativos que se possam gerar” na magistratura judicial. “Há objetivos que são diferentes, apesar de existir uma parcela que tem a ver com os direitos profissionais e que pode ser sobreponível”, reconhece. “Entre o quadro legal que nos rege, e a prática, ainda há uma décalage que urge eliminar ou pelo menos minorar”, reforça. Em que ficamos, então? “A AJP está sempre de portas abertas para colaborar com a ASJP em relação a essas matérias, e parece-nos que seria muito proveitoso que houvesse aqui uma conjugação de esforços para conseguir ultrapassar estes constrangimentos que se têm vindo a revelar ao longo destes anos todos”, diz Paula Ferreira Pinto. O certo, porém, é que as duas associações apenas se reuniram uma vez. Até ver.

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