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A moda dos livros sobre Auschwitz

A moda dos livros sobre Auschwitz

A verdade é que, nos últimos tempos, têm-se multiplicado os livros cujo assunto é, de algum modo, os campos de concentração, em particular o de Auschwitz. Todos sabemos que, de tempos a tempos, aparecem filões na literatura que são explorados até qu

“Fotografem, façam filmes, reúnam testemunhos. A certa altura da História um idiota vai erguer-se e dizer que isto nunca aconteceu.” A autoria destas palavras é atribuída ao general Dwight D. Eisenhower (1945), após a libertação de um campo de concentração nazi. Não raras vezes dou por mim a pensar na clarividência deste general que, ao libertar um campo de concentração nazi, solicitou que os países aliados enviassem jornalistas e fotógrafos para tomar notas, reunir provas documentais e noticiar todas as atrocidades cometidas. Ele tinha noção, já em 1945, ainda os factos tinham acabado de acontecer, que algum dia algum iluminado iria chegar e dizer que tal nunca tinha acontecido.

E o que nos diz a História posterior a 1945? Que, efectivamente, o momento de negar o que aconteceu não tardou assim tanto em chegar. Já não são poucas as vozes que se vão levantando, aqui e ali, promovendo aquilo que se convencionou chamar de “negacionismo” — algumas pessoas preferem falar em “revisionismo histórico”. Várias são as personalidades que entendem que o Holocausto, o genocídio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, não aconteceu ou não terá acontecido na maneira e nas proporções historicamente conhecidas.

Não sei se o fenómeno de que vos vou falar poderá ter alguma ligação com esta situação ou se estamos apenas perante uma nova moda no mercado da literatura. e se esgote o interesse no mesmo. O sucesso bombástico de O Código da Vinci, de Dan Brown, deu lugar a uma série de livros que seguiram o mesmo género: thriller de conspiração. O mega sucesso de As 50 Sombras de Grey deu lugar a uma quantidade insana de romances eróticos que tentaram replicar o estilo de E. L. James.

Agora, pelos vistos, chegou a vez de escrever sobre Auschwitz e, supostamente, algumas personagens que vivenciaram os campos de concentração. Não necessitei de realizar uma pesquisa muito aprofundada para encontrar a série de títulos dedicados ao tema que agora vos deixo. Vejamos: O Tatuador de Auschwitz, de Heather Morris (que já tem uma espécie de sequela, A Coragem de Cilka); As Cartas Perdidas de Auschwitz, de Anna Ellory; A Bibliotecária de Auschwitz, de Antonio G. Iturbe; O Carteiro de Auschwitz, de Joe Rosenblum; O Bloco das Crianças, de Ota B. Kraus; O rapaz que seguiu o pai para Auschwitz, de Jeremy Dronfield; As gémeas de Auschwitz, de Eva Mozes Kor; A rapariga de Auschwitz, de Eva Schloss e Karen Bartlett; A bailarina de Auschwitz, de Edith Eva Eger; Irmãs em Auschwitz, de Rema Kornreich Gelissen; O voluntário em Auschwitz, de Witold Pilecki; Aquela noite em Auschwitz, de Jamila Mafra; A fuga de Auschwitz, de Joel C. Rosenberg; O mágico de Auschwitz, de José Rodrigues dos Santos.

Gostaria de acreditar, como acima referi, que toda esta escrita seria uma forma de dar continuidade à vontade do general Eisenhower, de escrever para não esquecer, de escrever para preservar a memória. Mas a verdade é que a minha visão mais cínica pende mais para acreditar que se descobriu um novo filão para que todo e qualquer escritor venda livros: coloca-se Auschwitz no título e o sucesso é certo.

E aqui chegados, perguntar-me-ão: porque é que isso me incomoda?

Poderei dizer-vos que me incomoda pelo facto de sentir que estamos a cair na vulgarização do tema. Qualquer “historieta” é apresentada sob o cunho do “baseado em factos verídicos” (mais que não seja, o facto da história se passar num campo de concentração ou extermínio que de facto existiu). Parece que aconteceu de tudo nos campos de extermínio: romances, mais do que muitos; relações de amizade, mais do que muitas; aventuras, várias. Parece que tendemos a esquecer que a esperança de vida naqueles campos de concentração era extremamente limitada. Contam-nos histórias tão bonitas que até chegamos a acreditar que uma amizade entre uma criança alemã e uma criança judia poderia ser possível junto às redes que limitam um campo de concentração…

Se há algo que quero fazer é visitar um campo de concentração; até considero ser algo que todos devíamos fazer na vida. Penso que observar de perto as memórias que por ali ficaram poderá ajudar-nos a nunca esquecer, para não permitir que a História se volte a repetir. Contudo, essas visitas devem ser realizadas com o respeito que nos merecem, no caso de Auschwitz, as mais de um milhão de pessoas ali falecidas.

Infelizmente, vamos ouvindo, aqui e ali, que também estes locais estão a ser banalizados. Os responsáveis pelo complexo já se viram na obrigação de solicitar que se evitasse tirar fotos que não fossem dignas da memória de todas as pessoas que ali foram vítimas (fotografias de pessoas a equilibrar-se na linha antiga de caminhos de ferro que transportava as pessoas que ali chegavam, por exemplo).

A sensação que me fica é que, mais do que nunca, Auschwitz (e tomando aqui a parte – Auschwitz – pelo todo de todos os campos de concentração e extermínio) está na memória de todos nós. A visão é cada vez menos de respeito, mostrando alguma inconsciência, indiferença e até ignorância sobre o que era um campo de concentração e de como decorria a vida lá. Muitos dos imensos livros que encontramos hoje em dia mais não fizeram do que apresentar uma história romanceada num local de horror. E isto não é preservar a memória nem do local, nem das pessoas que lá pereceram, nem das barbaridades que lá foram cometidas.

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Permito-me deixar-vos com uma proposta de leitura: Se isto é um homem, de Primo Levi. Um livro escrito por alguém que descreve as suas experiências num campo de concentração, sem ceder ao melodrama, de uma forma objectiva. Uma obra imprescindível.

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