24.sapo.ptJosé Couto Nogueira - 19 set. 17:01

Brexit, a última temporada. As críticas não são incríveis, mas o protagonista promete não desiludir

Brexit, a última temporada. As críticas não são incríveis, mas o protagonista promete não desiludir

Se considerarmos o Brexit como uma novela, ou uma série de tv, a primeira temporada foi em 2016, o ano da campanha para o referendo, cuja votação decorreu a ...

Em Fevereiro, a epidemia do Covid-19 desabou sobre o mundo e ninguém mais se interessou pela questão do Brexit. Partiu-se do princípio de que se podia voltar à mesa das negociações logo que as restrições sanitárias aliviassem. Assim, aquela que aqui apresentamos como a terceira temporada da série Brexit terminou um bocado em anti-clímax, com imagens de pessoas mascaradas e assustadas, velhinhos a morrer, os negócios parados e Jonhson e os europeus concentrados em resolver a questão sanitária.

Agora, numa nova reviravolta, na segunda feira passada, Johnson voltou ao assunto do Brexit, e voltou espectacularmente, declarando que quer sair da UE em Outubro e que a alfândega no Mar da Irlanda afinal está fora de questão - ambos termos acordados com a União Europeia, algures na terceira temporada cujo desfecho aconteceu em janeiro deste ano.

Esta quarta temporada abre assim com Jonhson no Parlamento, num tom nada conciliatório, insistindo que é Bruxelas que se mostra inflexível quanto ao acordo – quando, de facto, o acordo já foi assinado por ambas as partes e não haveria mais atitudes a tomar quanto a ele, a não ser executá-lo. “Que a UE retire as suas ameaças de cima da mesa e aceite este acordo (sem fronteiras no Mar da Irlanda)” exigiu.

O problema é que a UE não ameaça nada; quer apenas que Londres cumpra o já acordado e não está disposta a aceitar uma mudança de última hora. Johnson argumenta que não quer “dar à UE o poder de fragmentar o Reino Unido”, como se a UE fosse responsável pela revolta que a Escócia e o País de Gales estão a ameaçar, caso o Reino Unido não cumpra o acordado.

A proposta de Jonhson, chamada Internal Market Bill (Lei do Mercado Interno), propõe que não haja qualquer tipo de fronteira entre o Ulster e a Grã Bretanha. Ou seja, volta-se à estaca zero. Numa primeira votação,263 deputados foram a favor e 77 contra.

A Lei passa agora para a Câmara dos Lordes, onde se espera que seja muito discutida, mas finalmente aprovada.

Como é que chegámos até aqui?

Chegado a este ponto, é muito provável, caro leitor, que se esteja a interrogar. "Afinal onde é que a história tinha ficado?". Não precisa rever todos os episódios, fazemos uma síntese de como chegámos até aqui e, caso queira ir ao detalhe, a cronologia dos acontecimentos e os documentos do acordo podem ser encontrados aqui.

A primeira temporada, recorde-se, terminou com a invocação por parte do Reino Unido do Artigo 50 do Tratado da União Europeia, em 29 de Março de 2017, depois de o referendo do ano anterior ter dado vitória aos que defenderam a saída da UE.

Não vamos recapitular todas as temporadas deste psicodrama colectivo; já relatamos – nós e toda a gente – as peripécias que ocorreram nestes quatro anos e que incluiram os ingredientes habituais: declarações gloriosas, atitudes de cortar o coração, facadas nas costas, cadáveres a boiar no Canal e, como pano de fundo, a inabalável fé dos ingleses na sua capacidade de sobrevivência em tempos conturbados.

A opinião pública mundial, desde os líderes aos cidadãos, dos mais diversos países – inclusive muitos ingleses – considera o Brexit um tiro no couraçado duma ilha que já foi um império mundial e agora luta para manter o território nacional que lhe resta. Tirando os pormenores mais ou menos convolutos, a grande justificação dos britânicos para abandonar as vantagens de um espaço económico, social e político muito mais importante e satisfatório do que a ilha e meia onde vivem é “reconquistar a soberania”. Ou seja, uma soberania partilhada com outros parece-lhes uma restrição séria à sua liberdade.

Um acordo assinado a 24 de Janeiro deste ano, e em vigor em 1 de Fevereiro, fixou definitivamente a separação das partes. Como tinha dito Michel Barnier, o negociador europeu, “o Acordo de Separação cria uma certeza legal, depois das incertezas do Brexit, e preserva os interesses da EU”.

O referendo de 23 de junho de 2016 mostrou a vontade dos ingleses em se divorciarem da UE, mas não incluiu nenhum pormenor de como esse divórcio se processaria: divisão dos bens, resolução das questões pendentes, formato da relação pós-matrimonial. Isso ficou para decisão posterior e, ao tentar decidir, verificou-se que havia uma infinidade de questões que precisavam de ser esmiuçadas. A segunda temporada foi gasta em discussões sobre normas jurídicas, controles de qualidade, direitos dos trabalhadores, trânsito de pessoas e bens, pescas nas águas territoriais - toda uma série de legislação que deixava se ser comum, devendo o Reino Unido voltar à sua legislação pré-união e ao mesmo tempo coordená-la com a europeia. Tarefa difícil, mas não impossível. Milhares de especialistas de ambas as partes debruçaram-se sobre esse emaranhado, nem sempre cordialmente.

Contudo, de todo este labirinto, uma questão sobressaiu imediatamente, pela sua impossibilidade legal: a fronteira entre a República da Irlanda, que fica na UE, e a Irlanda do Norte, que faz parte do Reino Unido. Não é apenas a única fronteira terrestre entre as duas entidades; é também uma fronteira cuja abolição, em 1988, permitiu a paz na Irlanda no Norte, ao fim de décadas de uma autêntica guerra civil.

A Irlanda do Norte, também conhecida por Ulster, tem a população dividida entre protestantes – os Unionistas, que querem permanecer na no Reino Unido,–  e os Nacionalistas, católicos, que querem integrar-se na República da Irlanda. Durante anos mataram-se uns aos outros denodadamente, sem que as tropas enviadas de Inglaterra, para proteger os unionistas e manter a união do Ulster à Grã-Bretanha, conseguissem derrotar o IRA republicano. Até que, num acordo patrocinado pelo Presidente norte-americano Bil Clinton, milagrosamente, chegaram chamado Acordo de Belfast (Good Friday Agreement), numa data para sempre celebrada: 10 de Abril de 1988.

O acordo não terminou a animosidade entre os dois grupos; até hoje permanecem os muros que os separam em várias cidades do Ulster, monumentos sinistros a um ódio interminável entre católicos e protestantes. Mas o acordo conseguiu, ao abrir a fronteira entre o Ulster e a República da Irlanda, que as hostilidades fossem suspensas. Toda a gente – isto é, ingleses, irlandeses, republicanos e unionistas, e a comunidade internacional – tem como certo que a guerra recomeçaria se a fronteira fosse restabelecida.

Esta sempre foi, e ainda é, a questão irresolúvel no divórcio, a quadratura do círculo: como separar o Reino Unido da Europa mantendo uma fronteira aberta entre os dois?

A terceira temporada deu palco a uma proposta original da União Europeia: se não podia haver fronteira em terra, porque não fazê-la no mar, no caso no chamado Mar da Irlanda, que divide a ilha da Grã-Bretanha da ilha da Irlanda?

Theresa May, a Primeira Ministra britânica, rejeitou-a de imediato, alegando que isso significaria fronteiras dentro do Reino Unido e que “nenhum Primeiro Ministro britânico aceitaria tal coisa.” Michel Barnier, o negociador-chefe europeu, propôs então outra ideia original, o famoso “backstop”: o Reino Unido continuaria no mercado comum da UE até se chegar a um acordo comercial., e depois logo se via. Theresa May até gostou da ideia, mas foi esmagada pelo seu próprio partido e acabou por ter de se demitir sem se chegar a uma conclusão.

Johnson despachou May (é o termo) com a promessa de que resolveria a charada expeditamente. Como? Muito simplesmente, aceitando o que May recusara: a criação de uma uma alfândega no Mar da Irlanda para certos produtos em trânsito da Grã Bretanha para a Irlanda do Norte. Teve a oposição imediata dos parlamentares Unionistas e alguns do seu próprio partido, mas obteve a concordância da União Europeia. O facto é que, mesmo contradizendo-se, conseguiu o que tinha prometido: “Let’s get Brexit done!” Uma eleição intercalar deu-lhe a confortável maioria de 80 parlamentares, ou seja, mão livre para fazer como quisesse.

Consumado o acordo, as duas partes começaram a conversar sobre os pormenores.

Estávamos em Janeiro deste ano, havia um ano para resolver as entrelinhas, até que chegou a pandemia.

E é assim que nos encontramos, no arranque desta quarta temporada, depois de meses de quase-esquecimento do Brexit, com uma nova reviravolta: o primeiro-ministro trouxe o tema de volta para a agenda, mas agora para dizer o inverso do que tinha acordado no tal acordo "expedito".

Pode Boris Jonhson renegar um tratado internacional que ele próprio assinou? Pode, mas as consequências são avassaladoras. Um país soberano não cumprir um tratado não é inédito, mas, neste caso em particular, a fragilidade da posição terá resultados pesados.

Johnson sempre disse que a perda do mercado europeu seria compensada com grandes acordos bilaterais com outros países, especialmente os Estados Unidos. Ora, para um acordo comercial ser aprovado pelos norte-americanos, precisa de passar na Câmara dos Representantes. Nancy Pelosi, a líder da maioria democrática, foi clara: “Nada pode ser feito que prejudique o Acordo de Belfast”. O candidato democrata, Biden, tuitou: “Qualquer acordo entre os EUA e o RU tem de respeitar o Acordo e impedir a volta duma fronteira (entre as duas Irlandas). Ponto final.

E se Trump ganhar as eleições de Novembro? Trump, é sabido, gosta de um “bom negócio”, e mesmo que faça um acordo com os ingleses não deixará de se aproveitar da situação débil em que o Reino Unido se encontra.

De um modo geral, será muito difícil para Johnson conseguir tratados com outros países depois de abertamente não cumprir o que assinou com Bruxelas.

E, mesmo no país, e no partido Conservador, vozes têm-se feito ouvir a criticar a “desonra” de não cumprir o que está tratado. Cinco ex-primeiros ministros, três conservadores e dois trabalhistas, declararam que não se pode faltar assim à palavra. Major e Cameron mostraram a sua indignação em entrevistas, assim como Tony Blair e alguns parlamentares.

Há quem considere que Jonhson não quer realmente trair a palavra dada, mas sim fazer pressão nas negociações com a União Europeia. Contudo, esta hipótese não tem grande fundamento, uma vez que a EU pode não ser sensível a pressões, primeiro porque está farta de tanto vai-e-vem, segundo porque na verdade não tem que reagir. Ou os ingleses cumprem o tratado que assinaram, ou os europeus limitam-se a fechar a fronteira entre as Irlandas, que em nada os prejudica.

São os ingleses que se têm de preocupar com as consequências internas: a possibilidade de uma nova guerra civil no Ulster e a forte possibilidade da Escócia fazer um segundo referendo para abandonar o Reino Unido. Os escoceses, que foram absorvidos no século XVII, ao fim de séculos de guerras, nunca se mostraram completamente satisfeitos com a integração. Num referendo levado a cabo em 2014, 45% votaram pela independência; e no Brexit, a maioria votou a favor de permanecer na União Europeia. Caso se tornem independentes e peçam para aderir à UE, a Grã-Bretanha não se pode opor, uma vez que já não é membro.

A situação no país de Gales não é tão nitidamente anti-britânica, mas não seria surpreendente se resolvesse seguir o caminho da Escócia.

Entre a hostilidade internacional e as ameaças de secessão dentro do Reino Unido, a atitude de Johnson é, no mínimo, arriscada.

Como acontece numa boa série de tv, a meio da última temporada os espectadores ainda não sabem como terminará a saga. Contudo, com um protagonista do gabarito de Johnson, o final pode ser surpreendente.

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