leitores@sabado.cofina.pt (Sábado) - 18 set. 07:00
O olhar mais infantil
O olhar mais infantil
Aqueles castelos na areia não se iam edificar sozinhos e alguém tinha de a levar pela mão a saltar as ondas. - Opinião , Sábado.
Com olhos de gato por adotar e uma voz de rebuçado, no fim do dia de praia, ela disse: "Estas pedrinhas são para teres saudades minhas." Era a primeira vez que nos víamos e ela não queria que fosse a última. Cinco anos de gente e ela já sabia tudo sobre a vida: quem não é visto não é lembrado.
No meio do pandemónio em que as férias em pandemia se tinham transformado, aquela tarde tinha sido uma bolha e a culpa tinha sido dela. Na Kidzania que a cabeça de uma criança sempre é, o mundo até podia estar diferente – mas alguma coisa se haveria de arranjar porque ela, ao contrário de nós, não olhava por cima do ombro com medo do vírus ou, pior, da diretora-geral da Saúde. Aqueles castelos na areia não se iam edificar sozinhos e alguém tinha de a levar pela mão a saltar as ondas.
Nós, que tínhamos passado os últimos dias alcoolizados dos pés à cabeça, de manhã à noite (com especial ênfase nas entradas e saídas do supermercado da vila), agradecemos os parêntesis que ela nos propôs. Ninguém ia cancelar os cuidados mas, enfim, por ela podíamos pintar o alerta vermelho num tom mais alaranjado.
Quando demos conta, éramos oito debaixo do chapéu. Quando nos despedimos – eu já de pedrinhas nos bolsos e lágrimas nos olhos –, éramos um grupo de risco. Na manhã seguinte, cada espirro era recebido como uma granada e só o humor nos distraiu da pior hipótese: que, infantis, tivéssemos relaxado, respondendo um "sim" platónico ao poeta Romário (esse mesmo, do Brasil de 94), que um dia perguntou a um adversário: "O teu anjo da guarda não está nem perto e tu vai sentar na janela?"
Não tínhamos ilusões: tudo estaria bem enquanto não acabasse mal. Voltámos das férias sem sintomas que não os de dias felizes e cheios. Já em Lisboa, uma necessidade primordial levou-me a uma grande superfície. A tentar escapar a contactos fortuitos, pensei na minha amiga de 5 anos. Como ela, 100 pessoas estavam ali a querer fazer de conta – eu peguei nas compras e corri para casa. Afinal, já não sou uma criança.
No meio do pandemónio em que as férias em pandemia se tinham transformado, aquela tarde tinha sido uma bolha e a culpa tinha sido dela. Na Kidzania que a cabeça de uma criança sempre é, o mundo até podia estar diferente – mas alguma coisa se haveria de arranjar porque ela, ao contrário de nós, não olhava por cima do ombro com medo do vírus ou, pior, da diretora-geral da Saúde. Aqueles castelos na areia não se iam edificar sozinhos e alguém tinha de a levar pela mão a saltar as ondas.
Nós, que tínhamos passado os últimos dias alcoolizados dos pés à cabeça, de manhã à noite (com especial ênfase nas entradas e saídas do supermercado da vila), agradecemos os parêntesis que ela nos propôs. Ninguém ia cancelar os cuidados mas, enfim, por ela podíamos pintar o alerta vermelho num tom mais alaranjado.
Quando demos conta, éramos oito debaixo do chapéu. Quando nos despedimos – eu já de pedrinhas nos bolsos e lágrimas nos olhos –, éramos um grupo de risco. Na manhã seguinte, cada espirro era recebido como uma granada e só o humor nos distraiu da pior hipótese: que, infantis, tivéssemos relaxado, respondendo um "sim" platónico ao poeta Romário (esse mesmo, do Brasil de 94), que um dia perguntou a um adversário: "O teu anjo da guarda não está nem perto e tu vai sentar na janela?"
Não tínhamos ilusões: tudo estaria bem enquanto não acabasse mal. Voltámos das férias sem sintomas que não os de dias felizes e cheios. Já em Lisboa, uma necessidade primordial levou-me a uma grande superfície. A tentar escapar a contactos fortuitos, pensei na minha amiga de 5 anos. Como ela, 100 pessoas estavam ali a querer fazer de conta – eu peguei nas compras e corri para casa. Afinal, já não sou uma criança.