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O apagamento da Organização Mundial do Comércio

O apagamento da Organização Mundial do Comércio

A OMC passou razoavelmente incólume à primeira vaga de movimentos anti-globalização dos anos 1990, mas esta segunda vaga está, cada vez mais, a paralisá-la. Se o comércio já se estava a tornar demasiado político, hoje a tendência é ainda mais acentu

1. O que aconteceu à Organização Mundial do Comércio (OMC) que, fundada com grande entusiasmo e elevadas expectativas nos anos 1990, vinte e cinco anos depois tem um papel apagado no comércio global? Como se passou de um grande optimismo a uma descrença generalizada no sistema multilateral global, hoje profundamente afectado pelo conflito comercial EUA-China e pelo impacto da pandemia da covid-19? Em resultado dessas tensões, a 14 de Maio de 2020, o diretor-geral da organização, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, anunciou a renúncia ao cargo a 31 de Agosto, terminando o seu mandato um ano mais cedo. Na altura da criação OMC, que entrou em funcionamento em 1995, esperava-se que esta pudesse implementar com sucesso um abrangente ciclo de negociações comerciais num mundo cada vez mais globalizado. Esperava-se também que nessa tarefa superasse amplamente os resultados obtidos na Ronda do Uruguai (1986-1994), a última do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT1947). Na realidade, isso nunca aconteceu.

2. Em parte o problema é tão antigo quanto a própria OMC. A tarefa da organização nunca foi facilitada pelas múltiplas e contraditórias expectativas que se criaram à sua volta. Por um lado, a expectativa era de uma maior liberalização do comércio internacional, entendido de forma (muito) ampla. Quer dizer, os acordos comerciais globais abrangeriam não só os produtos industriais como a generalidade dos produtos agrícolas, dos serviços, dos produtos audiovisuais e de outros produtos transaccionáveis, incluindo ainda os chamados obstáculos não pautais e as diferenças de regulamentação. Por outro lado, a expectativa era quase oposta assentando num lógica de alargamento da agenda negocial, mas para reflectir preocupações sociais, ambientais e de desenvolvimento. Pretendia-se assim que fosse adoptada uma ambiciosa agenda negocial, não para ampliar os acordos de comércio sctrico sensu, mas para incluir temáticas como os direitos dos trabalhadores e dos consumidores, o impacto do comércio no ambiente e o desenvolvimento. Estas múltiplas reivindicações e expectativas, em grande parte contraditórias, em nada facilitaram a tarefa negocial. Pelo contrário, provavelmente contribuíram para o fracasso da OMC como veremos em seguida.

3. A ronda de Doha foi primeiro ciclo de negociações comerciais globais no âmbito da organização. Iniciou-se em finais de 2001, na capital do Qatar, num contexto de tensões político-militares internacionais provocadas pelos atentados terroristas de 11 de Setembro nos EUA. Mas a Agenda de Doha para o Desenvolvimento foi ambiciosa em excesso. As negociações pretendiam abranger múltiplas áreas do comércio internacional em dossiers temáticos tão diversos como a agricultura, os serviços, a facilitação do comércio, as normas, o meio ambiente, as indicações geográficas e a propriedade intelectual, entre outros. Assim, o comércio seria um potenciador de desenvolvimento (temática atractiva para os países menos desenvolvidos) e as regras do sistema comercial internacional seriam revistas de forma a eliminar, o mais possível, os obstáculos não pautais (temática do interesse dos países mais desenvolvidos). As questões ambientais ligadas ao comércio entraram na agenda negocial com grande projecção mediática. Quanto aos serviços, ao comércio de produtos agrícolas e às questões ligadas à protecção da propriedade intelectual, voltaram a reaparecer nas negociações. Todavia, este abrangente conjunto de dossiers temáticos, para além da sua complexidade técnica, passou a ter, pela própria natureza dos assuntos abordados, uma incontornável dimensão política.

4. Ao envolverem-se nas negociações mais de uma centena e meia de Estados — actualmente são 164 os membros da OMC —, ganhou-se em representatividade do mundo, mas perdeu-se a relativa homogeneidade inicial do GATT. Na OMC, uma organização tendencialmente global, os seus membros têm perfis, interesses, graus de participação no comércio internacional e níveis de desenvolvimento muito diferenciados. Em parte, devido a essa enorme heterogeneidade, nas sucessivas reuniões negociais, de Doha (Qatar) a Nairóbi (Quénia), passando por Cancún (México) ou Hong Kong (China), o resultado foi quase sempre o mesmo: adiamentos, suspensões e falhanços na obtenção de resultados de relevo. Aspecto importante, o cepticismo quanto às vantagens da globalização aumentou e enraizou-se nas áreas do mundo que mais a impulsionaram: os EUA e a União Europeia. Originalmente foi daí que vieram os maiores apoios para o último ciclo de negociações do GATT — a já referida Ronda do Uruguai — e para a criação da própria OMC. Mas no actual contexto mundial surgiram crescentes pressões para serem adoptadas medidas de política comercial que podem ser rotuladas como proteccionistas e expressão de um nacionalismo económico.

5. Uma das inovações institucionais de maior relevância da OMC foi a criação de um Órgão de Resolução de Litígios, suprindo uma lacuna importante do sistema anterior do GATT. Todavia, também este sistema de resolução de diferendos ficou no centro das tensões políticas que hoje se projectam na OMC. Há um número cada vez menor de membros para decidir litígios de comércio internacional, resultado de os EUA boicotarem a nomeação de novos membros à medida que os mandatos dos actuais terminam. Desde finais de 2019 há apenas um membro activo cujo mandato termina a 30 de Novembro de 2020. Está instalada entre muitos norte-americanos a convicção de que a arbitragem da OMC é enviesada e injusta, por demasiadas vezes proferir decisões desfavoráveis ao país, mas uma análise serena dos resultados das decisões de arbitragem desses litígios não dá solidez a essa convicção. Seja como for, um país demandado passa a ter ao seu dispor uma estratégia simples de bloqueio das decisões desfavoráveis: apresenta um recurso de forma colocar o caso num impasse legal, afastando a possibilidade de a OMC autorizar uma retaliação tarifária.

6. Há mais de uma década, Zaki Laïdi, em How trade became geopolitics, constatava que as questões comerciais deixaram de ser vistas como meramente técnicas e de despertarem apenas o interesse dos especialistas. Em vez disso, “tornaram-se altamente políticas, não apenas porque as questões comerciais mudaram, mas também porque o contexto geopolítico em que as trocas ocorrem se alterou”. Acrescentava ainda que essa transformação impedia que fossem submetidas “a exigências puramente do mercado” e que as negociações comerciais “serão sempre difíceis e impopulares por uma razão importante: os benefícios do comércio raramente são imediatos e visíveis, enquanto os custos são visceral e instantaneamente sentidos”. Essa politização das negociações comerciais não diminuiu na última década, mas sofreu uma transformação relevante. Ocorreu a passagem de uma contestação à globalização fundamentalmente feita por movimentos da esquerda social e política — e centrada nos problemas, injustiças e desigualdades nos países menos desenvolvidos — para uma outra contestação feita agora por movimentos sociais e políticos sobretudo à direita — e tendo por preocupação a deterioração das condições de vida e de emprego das classes média/média-baixa dos países do Norte, ou seja, dos países desenvolvidos.

7. ada. A Ronda de Doha foi abandonada sem perspectivas de uma outra abrangente negociação multilateral-global lhe suceder. Pelo contrário, o bilateralismo e o proteccionismo estão a ocupar o terreno. O sistema de resolução de litígios de comércio está hoje tendencialmente paralisado. Há sinais de que a crescente rivalidade entre as duas maiores potências comerciais estaduais (os EUA e a China) irá continuar a projectar-se negativamente na OMC, como mostra o referido caso Órgão de Resolução de Litígios, cuja paralisação tem nessa rivalidade uma causa maior. A tudo isto acresce o extraordinário impacto na economia e comércio global da pandemia da covid-19, sendo nesta altura apenas possível conjecturar sobre o que serão as suas múltiplas consequências. Não é difícil prever que a OMC enfrentará tempos difíceis especialmente se as tendências de desglobalização se acentuarem no mundo em devir.

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