expresso.ptMarta Gonçalves - 18 set. 19:43

#AlanKurdi 5. Onde está a dignidade em ter de escolher quem come ou quem ficará sem comer?

#AlanKurdi 5. Onde está a dignidade em ter de escolher quem come ou quem ficará sem comer?

O Expresso está a bordo do navio de salvamento e resgate Alan Kurdi, operado no Mediterrâneo pela Organização não-governamental alemã Sea-Eye: estas são as crónicas desta viagem. Capítulo V

A escultura esteve escondida uns dias entre os livros e junto à guitarra. Até que Kai pegou nela e explicou. Bateu com a colher de pau no tacho do almoço para chamar à atenção de toda a gente. O som estridente arrasou o burburinho de todas as conversas paralelas que enchiam a sala. "Bom, parece que isto resulta." Kai é de Bonn, no norte da Alemanha, veio como voluntário para o Alan Kurdi e tinha aquela escultura na mão, um objeto estranho em forma de gente que nos primeiros dias estava meio escondido. "É uma escultura que me foi entregue por um artista da minha terra para trazer para o navio e oferecer à Sea-Eye. Deixem-me explicar-vos o que significa."

A coroa dourada no topo da cabeça da escultura, feita de madeira tosca, diz que ali há um rei ou uma rainha. Não há nada mais que indique nobreza. Ou pelo menos esse tipo de nobreza real de reis e rainhas, de vestes pomposas e luxos. Há, no entanto, algo de nobre mas no sentido definido pelo dicionário como "honroso e apreciável". A ideia de Ralf Knoblauch, o escultor alemão que pensou a figura, era "dizer que todos os seres humanos, todos os homens e todas as mulheres, são reis e rainhas, que a dignidade do ser humano é universal". Ralf Knoblauch encontrou formas de fazer chegar estas esculturas a lugares onde acredita que a dignidade está esquecida. "É mais um símbolo que nos lembra todos os dias de que ninguém se pode afogar no Mediterrâneo", explica Kai a quem segue a bordo do Alan Kurdi. A escultura segue depois para as mãos do Eloy, um dos tripulantes, que se ofereceu para construir um trono, fixá-lo à parede e dar ao rei um lugar de destaque na sala do navio.

Os meus olhos estavam prestes a fechar, na cabeça apenas a certeza de que nada me iria incomodar até voltar a acordar. Apaguei a luz do candeeiro e dois segundos depois a Vera entrou na cabine. "Oh, já estás aqui." Percebi pelo tom de voz dela que precisava de falar - passámos tanto tempo uns com os outros que é estranhamente rápida a capacidade de nos entendermos. Liguei o candeeiro e ela, que é a cozinheira e responsável pelas provisões a bordo, estava sentada no banco. O corpo completamente caído. Cansado. Derrotado.

Explicou-me que o capitão a tinha chamado. O Alan Kurdi recebeu um pedido de ajuda do navio, também de salvamento e resgate, Open Arms (operado pela organização não-governamental espanhola com o mesmo nome). Pedem ajuda. Não. Pedem comida.

O Open Arms tem há vários dias 260 pessoas resgatadas a bordo, ninguém os deixa desembarcar. Nem Itália nem Malta. A comida está acabar. O capitão chamou a Vera porque precisava de saber o que tínhamos e o que podíamos dar. Nenhuma decisão foi tomada naquela noite. Uma escolha tinha de ser feita: ajudar, sabendo que em breve seria o Alan Kurdi a ficar sem comida, ou recusar e deixar que quase 300 pessoas não tenham que comer. Eles ou nós?

A decisão foi tomada. Anunciada na manhã seguinte: ajudar.

Onde está a dignidade em ter de escolher quem come ou quem ficará sem comer?

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